Processo C‑332/11
ProRail BV
contra
Xpedys NV e o.
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van Cassatie)
«Regulamento (CE) n.° 1206/2001 — Cooperação no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial — Execução direta do ato de instrução — Designação de um perito — Missão efetuada parcialmente no território do Estado‑Membro do órgão jurisdicional de reenvio e parcialmente no território de outro Estado‑Membro»
Sumário do Acórdão
1. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Competência do juiz nacional — Determinação e apreciação dos factos do litígio — Necessidade de uma questão prejudicial e pertinência das questões suscitadas — Apreciação pelo juiz nacional
(Artigo 267.° TFUE)
2. Cooperação judiciária em matéria civil — Obtenção de provas em matéria civil ou comercial — Regulamento n.° 1206/2001 — Âmbito de aplicação — Ato de instrução ordenado por iniciativa de uma das partes no quadro de um processo de medidas provisórias — Inclusão
(Regulamento n.° 1206/2001 do Conselho, artigo 1.°, n.os 1 e 2)
3. Cooperação judiciária em matéria civil — Obtenção de provas em matéria civil ou comercial — Regulamento n.° 1206/2001 — Objetivo
(Regulamento n.° 1206/2001 do Conselho, considerandos 2, 7, 8, 10 e 11)
4. Cooperação judiciária em matéria civil — Obtenção de provas em matéria civil ou comercial — Regulamento n.° 1206/2001 — Âmbito de aplicação material — Execução direta de uma peritagem efetuada parcialmente no território de outro Estado‑Membro — Ausência de obrigação, para o órgão jurisdicional que ordena a medida de instrução, de seguir o procedimento previsto pelo regulamento — Limites — Afetação da autoridade pública do Estado‑Membro requerido
[Regulamento n.° 1206/2001 do Conselho, artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.°]
(cf. n.os 30, 33)
(cf. n.os 34, 35)
(cf. n.os 43‑46)
4. Os artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial, devem ser interpretados no sentido de que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que pretenda que um ato de instrução confiado a um perito seja efetuado no território de outro Estado‑Membro não está necessariamente obrigado a recorrer ao meio de obtenção das provas previsto por estas disposições a fim de poder ordenar esse ato de instrução.
Com efeito, em determinadas circunstâncias, pode revelar‑se mais simples, mais eficaz e mais célere, para o órgão jurisdicional que ordena tal peritagem, proceder a tal obtenção das provas sem recorrer ao Regulamento n.° 1206/2001. Todavia, na falta de um acordo ou convénio entre os Estados‑Membros na aceção do artigo 21.°, n.° 2, desse regulamento, o meio de obtenção das provas previsto nos referidos artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° é o único que permite ao órgão jurisdicional de um Estado‑Membro efetuar uma peritagem diretamente noutro Estado‑Membro na medida em que esta poderia, em determinadas circunstâncias, afetar a autoridade pública do Estado‑Membro no qual deve ser realizada, designadamente quando se trate de uma peritagem efetuada em locais relacionados com o exercício de tal autoridade ou em locais aos quais o acesso ou outra intervenção, por força da legislação do Estado‑Membro no qual é efetuada, estão proibidos ou só são permitidos a pessoas autorizadas.
(cf. n.os 45, 47, 48, 54 e disp.)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
21 de fevereiro de 2013 (*)
«Regulamento (CE) n.° 1206/2001 — Cooperação no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial — Execução direta do ato de instrução — Designação de um perito — Missão efetuada parcialmente no território do Estado‑Membro do órgão jurisdicional de reenvio e parcialmente no território de outro Estado‑Membro»
No processo C‑332/11,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Hof van Cassatie (Bélgica), por decisão de 27 de maio de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 30 de junho de 2011, no processo
ProRail BV
contra
Xpedys NV,
FAG Kugelfischer GmbH,
DB Schenker Rail Nederland NV,
Nationale Maatschappij der Belgische Spoorwegen NV,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),
composto por: A. Tizzano, presidente de secção, A. Borg Barthet, M. Ilešič (relator), J.‑J. Kasel e M. Berger, juízes,
advogado‑geral: N. Jääskinen,
secretário: A. Calot Escobar,
vistos os autos,
vistas as observações apresentadas:
¾ em representação da ProRail BV, por S. Van Moorleghem, advocaat,
¾ em representação da Xpedys NV, DB Schenker Rail Nederland NV e da Nationale Maatschappij der Belgische Spoorwegen NV, por M. Godfroid, advocaat,
¾ em representação do Governo belga, por J.‑C. Halleux e T. Materne, na qualidade de agentes,
¾ em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,
¾ em representação do Governo alemão, por K. Petersen, na qualidade de agente,
¾ em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, na qualidade de agente,
¾ em representação do Governo suíço, por D. Klingele, na qualidade de agente,
¾ em representação da Comissão Europeia, por A.‑M. Rouchaud‑Joët e R. Troosters, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de setembro de 2012,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial (JO L 174, p. 1).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a ProRail BV (a seguir «ProRail») à Xpedys NV (a seguir «Xpedys»), à FAG Kugelfischer GmbH (a seguir «FAG»), à DB Schenker Rail Nederland NV (a seguir «DB Schenker») e à Nationale Maatschappij der Belgische Spoorwegen NV (a seguir «SNCB»), na sequência de um acidente que envolveu um comboio proveniente da Bélgica e com destino aos Países Baixos.
Quadro jurídico
Regulamento (CE) n.° 1206/2001
3 Nos termos do considerando 2 do Regulamento n.° 1206/2001, «[o] bom funcionamento do mercado interno exige que seja melhorada e, em especial, simplificada e acelerada a cooperação entre tribunais no domínio da obtenção de provas».
4 Nos termos dos considerandos 6 e 7 deste regulamento:
«(6) No domínio da obtenção de provas, não existe, até à data, qualquer instrumento jurídico vinculativo entre todos os Estados‑Membros. A Convenção da Haia, de 18 de março de 1970, sobre a obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil ou comercial, só é aplicável entre 11 Estados‑Membros da União Europeia.
(7) Dado que, para uma decisão num processo em matéria civil ou comercial pendente num Tribunal de um Estado‑Membro, é muitas vezes necessária a obtenção de provas noutro Estado‑Membro, as atividades da Comunidade não podem cingir‑se ao domínio da transmissão de atos judiciais e extrajudiciais […]. Assim sendo, é necessário prosseguir a melhoria da cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas.»
5 O considerando 15 do referido regulamento tem a seguinte redação:
«No sentido de facilitar a obtenção de provas, deverá ser conferida aos tribunais dos Estados‑Membros, de acordo com o seu direito nacional, a possibilidade de obter provas diretamente de outro Estado‑Membro, mediante a aceitação deste último e nas condições determinadas pela entidade central ou autoridade competente do Estado‑Membro requerido.»
6 O artigo 1.° do Regulamento n.° 1206/2001, intitulado «Âmbito», dispõe:
«1. O presente regulamento é aplicável em matéria civil ou comercial, sempre que um tribunal de um Estado‑Membro[…] requeira, nos termos da sua legislação nacional:
a) Ao tribunal competente de outro Estado‑Membro a obtenção de provas; ou
b) A obtenção de provas diretamente noutro Estado‑Membro.
2. Não será requerida a obtenção de provas que não se destinem a ser utilizadas num processo judicial já iniciado ou previsto.
3. No presente regulamento, a expressão ‘Estados‑Membros’ designa todos os Estados‑Membros com exceção da Dinamarca.»
7 Nos termos do artigo 3.° do Regulamento n.° 1206/2001, intitulado «Entidade central»:
«1. Cada Estado‑Membro designa uma entidade central encarregada de:
a) Fornecer informações aos tribunais;
b) Procurar soluções para as dificuldades que possam surgir em relação a um pedido;
c) Remeter, em casos excecionais, um pedido ao tribunal requerido, a rogo de um tribunal competente.
2. Os Estados federais, os Estados em que existam vários sistemas jurídicos e os Estados com unidades territoriais autónomas podem designar mais que uma entidade central.
3. Cada Estado‑Membro designará também a entidade central mencionada no n.° 1 ou uma ou mais autoridades competentes responsáveis pela tomada de decisões sobre os pedidos, na aceção do artigo 17.°»
8 No capítulo II deste regulamento, relativo à transmissão e à execução dos pedidos de proceder a uma diligência de instrução, figura uma secção 3, intitulada «Obtenção de provas pelo tribunal requerido», composta pelos artigos 10.° a 16.° do referido regulamento.
9 O artigo 10.° do Regulamento n.° 1206/2001, intitulado «Disposições gerais relativas à execução do pedido», dispõe:
«1. O tribunal requerido executará prontamente o pedido, o mais tardar no prazo de 90 dias a contar da data da sua receção.
2. O tribunal requerido executará o pedido de acordo com a legislação do seu Estado‑Membro.
[…]»
10 O artigo 17.° do referido regulamento, que regula a obtenção de provas diretamente pelo tribunal requerente, prevê:
«1. Se o tribunal requerer a obtenção de provas diretamente noutro Estado‑Membro, apresentará nesse Estado um pedido à entidade central ou à autoridade competente referidas no n.° 3 do artigo 3.° […].
2. A obtenção direta de provas apenas poderá ocorrer se for feita numa base voluntária, sem recorrer a medidas coercivas.
Se a obtenção direta de provas implicar a audição de uma pessoa, o tribunal requerente informará essa pessoa de que a audição é executada numa base voluntária.
3. A obtenção de provas será efetuada por um magistrado ou por outra pessoa, por exemplo um perito designado segundo a legislação do Estado‑Membro do tribunal requerente.
4. No prazo de 30 dias a contar da data de receção do pedido, a entidade central ou a autoridade competente do Estado‑Membro requerido indicará ao tribunal requerente se o pedido é aceite e, eventualmente, as condições da sua execução, segundo a lei do seu Estado‑Membro […].
Em especial, a entidade central ou a autoridade competente poderá designar um tribunal do seu Estado‑Membro para participar na obtenção de provas, a fim de assegurar a adequada aplicação do presente artigo e as condições nele estabelecidas.
A entidade central ou a autoridade competente incentivará o uso das tecnologias da comunicação, como a videoconferência e a teleconferência.
5. A entidade central ou a autoridade competente podem recusar a obtenção direta de provas, na medida em que:
a) O pedido não caiba no âmbito do presente regulamento, de acordo com o artigo 1.°;
b) O pedido não contenha todas as informações necessárias, de acordo com o artigo 4.°;
c) A obtenção direta de provas requerida for contrária aos princípios fundamentais da legislação do seu Estado‑Membro.
6. Sem prejuízo das condições constantes do n.° 4, o tribunal requerente executa o pedido em conformidade com a legislação do seu Estado‑Membro.»
11 O artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1206/2001, que rege a relação com acordos ou compromissos nos quais os Estados‑Membros não são ou não serão partes, dispõe:
«O presente regulamento não impede que os Estados‑Membros mantenham ou celebrem acordos ou convénios entre dois ou mais Estados‑Membros destinados a facilitar mais a obtenção de provas, desde que esses acordos ou convénios sejam compatíveis com o presente regulamento.»
Regulamento (CE) n.° 44/2001
12 O artigo 31.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO L 12, p. 1), dispõe:
«As medidas provisórias ou cautelares previstas na lei de um Estado‑Membro podem ser requeridas às autoridades judiciais desse Estado, mesmo que, por força do presente regulamento, um tribunal de outro Estado‑Membro seja competente para conhecer da questão de fundo.»
13 No capítulo III do Regulamento n.° 44/2001, intitulado «Reconhecimento e execução», figura o artigo 32.°, o qual prevê:
«Para efeitos do presente regulamento, considera‑se ‘decisão’ qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado‑Membro independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo.»
14 Nos termos do artigo 33.°, n.° 1, deste regulamento:
«As decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo.»
Litígio no processo principal e questão prejudicial
15 Em 22 de novembro de 2008, um comboio de mercadorias proveniente da Bélgica e com destino aos Países Baixos descarrilou perto de Amesterdão (Países Baixos).
16 Na sequência desse acidente, foram propostas ações judiciais tanto nos órgãos jurisdicionais belgas como nos órgãos jurisdicionais neerlandeses. O processo tramitado nestes últimos órgãos jurisdicionais, chamados a conhecer da questão do fundo pela ProRail, a fim de obter o pagamento de uma indemnização por perdas e danos para reparação do prejuízo sofrido pela rede ferroviária neerlandesa, não é objeto dos presentes autos.
17 O litígio no processo principal, que os órgãos jurisdicionais belgas foram chamados a dirimir em processo de medidas provisórias, opõe a ProRail a quatro outras sociedades relacionadas com o acidente acima mencionado, a saber, a Xpedys, a FAG, a DB Schenker e a SNCB.
18 A ProRail, sociedade com sede em Utrecht (Países Baixos), assegura a gestão das principais vias férreas nos Países Baixos e celebra contratos de acesso com empresas de transporte ferroviário, nomeadamente com a DB Schenker.
19 A DB Schenker, que também tem sede em Utrecht, é uma transportadora ferroviária privada cujo parque ferroviário é composto por vagões que foram inicialmente tomados de locação, em 2001, à SNCB, sociedade cuja sede é em Bruxelas (Bélgica).
20 A Xpedys, cuja sede também é em Bruxelas, retomou, segundo a DB Schenker e a SNCB, a qualidade da locadora destes vagões a partir de 1 de maio de 2008.
21 A FAG, que tem a sua sede em Schweinfurt (Alemanha), é uma construtora de peças de vagões, tais como eixos, rolamentos de eixos, caixas de eixos e caixas de rolamentos de eixos.
22 Após o acidente, a saber, em 11 de fevereiro de 2009, a DB Schenker pediu que a Xpedys e a SNCB, nas qualidades respetivas de locadoras de uma parte dos vagões implicados no referido acidente, fossem citadas para comparecer perante o presidente do rechtbank van koophandel te Brussel (Tribunal de Comércio de Bruxelas) com vista a obter a nomeação de um perito. A ProRail e a FAG intervieram no processo. No decurso deste último, a ProRail requereu ao órgão jurisdicional que conhece do litígio que indeferisse o pedido de nomeação do perito ou, caso essa nomeação viesse a ocorrer, limitasse a sua missão à declaração da avaria sofrida pelos vagões, não ordenasse uma peritagem à totalidade da rede ferroviária neerlandesa e ordenasse que o perito desempenhasse a sua missão em conformidade com as disposições do Regulamento n.° 1206/2001.
23 Por despacho de 5 de maio de 2009, o presidente do rechtbank van koophandel te Brussel julgou procedente o pedido de medidas provisórias da DB Schenker. Designou um perito e definiu a missão deste último, a qual devia ser efetuada na sua maior parte nos Países Baixos. No âmbito desta peritagem, o perito devia deslocar‑se ao local do acidente nos Países Baixos, bem como a todos os locais onde pudesse efetuar averiguações úteis, a fim de determinar as causas do acidente, as avarias sofridas pelos vagões e a extensão dos danos. Além disso, foi chamado a identificar o fabricante de certos elementos técnicos dos vagões e a pronunciar‑se sobre o estado destes elementos, bem como sobre o modo de carregamento dos vagões e a carga útil por eixo. Por último, o perito devia examinar a rede e a infraestrutura ferroviárias geridas pela ProRail e pronunciar‑se sobre a questão de saber se, e em que medida, esta infraestrutura poderia ter estado igualmente na origem do acidente.
24 A ProRail interpôs recurso do referido despacho para o hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas), pedindo, a título principal, que fosse julgado improcedente o pedido de designação de um perito e, a título subsidiário, que a missão do perito belga fosse limitada à declaração do dano sofrido nos vagões, na medida em que esta missão pudesse ser efetuada na Bélgica, não fosse autorizada qualquer peritagem à rede e às infraestruturas ferroviárias neerlandesas, nem qualquer liquidação de contas entre as partes, ou, na hipótese de ser mantida a designação do perito, que a sua missão nos Países Baixos fosse efetuada em conformidade com o procedimento previsto pelo Regulamento n.° 1206/2001.
25 Tendo o hof van beroep te Brussel negado provimento ao recurso, a ProRail interpôs recurso de cassação para o órgão jurisdicional de reenvio, invocando a inobservância, por um lado, dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 e, por outro, do artigo 31.° do Regulamento n.° 44/2001.
26 O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro quer que se proceda a uma execução direta do ato de instrução noutro Estado‑Membro, tal como uma peritagem judicial, deve ser pedida uma autorização prévia nos termos dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 às autoridades deste último Estado. Interroga‑se igualmente sobre a pertinência, para o processo nele pendente, do artigo 33.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, segundo o qual as decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros sem necessidade de recurso a qualquer processo.
27 Nestas condições, o Hof van Cassatie decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Devem os artigos 1.° e 17.° do [Regulamento n.° 1206/2001], atendendo, designadamente, à [regulamentação] europeia sobre o reconhecimento e a execução de decisões judiciais em matéria civil e comercial e ao princípio expresso no artigo 33.°, n.° 1, do [Regulamento n.° 44/2001], de que as decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros sem necessidade de recurso a qualquer processo, ser interpretados no sentido de que o tribunal que nomeia um perito judicial, cuja missão deve ser desempenhada em parte no território do Estado‑Membro a que esse tribunal pertence e em parte também noutro Estado‑Membro, deve recorrer, para a execução desta última parte da missão do perito, única e exclusivamente ao método instituído pelo artigo 17.° [do Regulamento n.° 1206/2001], ou no sentido de que o perito judicial nomeado pelo primeiro Estado‑Membro também pode, fora do disposto no Regulamento n.° 1206/2001, ser incumbido de uma investigação que tem de ser parcialmente realizada noutro Estado‑Membro da União Europeia?»
Quanto à questão prejudicial
Quanto à admissibilidade
28 A Xpedys, a DB Schenker e a SNCB sustentam que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, pelo facto de apresentar um caráter puramente hipotético e ser desprovido de pertinência para efeitos da resolução do litígio no processo principal, uma vez que o Regulamento n.° 1206/2001 não é aplicável a este litígio.
29 Alegam, antes de mais, que a iniciativa da peritagem transfronteiriça foi tomada por uma das partes no litígio no processo principal, e não por um órgão jurisdicional, como impõem os artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001. Em seguida, o artigo 17.° deste regulamento, lido à luz do considerando 7 deste último, aplica‑se unicamente quando o órgão jurisdicional nacional deve conhecer da questão de fundo, o que não é o caso neste litígio. Além disso, em seu entender, não se pode considerar que a peritagem transfronteiriça constitui o exercício de um ato de poder público de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro. Por último, a aplicação do Regulamento n.° 1206/2001 no quadro do referido litígio iria prolongar a duração do processo, o que é contrário aos objetivos do referido regulamento, a saber, a simplificação e a aceleração da obtenção de provas.
30 A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência assente, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.° TFUE, que se baseia numa nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, o juiz nacional é o único competente para verificar e apreciar os factos do litígio no processo principal, bem como para interpretar e aplicar o direito nacional. Do mesmo modo, apenas ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional, compete apreciar, atendendo às especificidades do processo, a necessidade e a pertinência das questões por ele submetidas ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, quando as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (v., designadamente, acórdãos de 12 de abril de 2005, Keller, C‑145/03, Colet., p. I‑2529, n.° 33; de 11 de setembro de 2008, Eckelkamp e o., C‑11/07, Colet., p. I‑6845, n.os 27 e 32; e de 25 de outubro de 2012, Rintisch, C‑553/11, n.° 15).
31 Assim, o Tribunal de Justiça só se pode recusar a responder a uma questão prejudicial submetida à sua apreciação por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe foram submetidas (v., designadamente, acórdãos de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito, C‑618/10, n.° 77, e Rintisch, já referido, n.° 16).
32 Ora, há que constatar que tal não é o caso vertente.
33 Com efeito, resulta claramente do pedido de decisão prejudicial que a interpretação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 é necessária à resolução do litígio no processo principal, estando o recurso de cassação interposto no Hof van Cassatie baseado na violação destes artigos. Assim, a interpretação pelo Tribunal de Justiça dos referidos artigos permitirá ao órgão jurisdicional de reenvio saber se estes obstam a que a peritagem em causa no processo principal, que deve ser efetuada em parte noutro Estado‑Membro, seja ordenada sem se recorrer ao referido regulamento.
34 No que respeita, mais especificamente, ao argumento segundo o qual o litígio no processo principal não se insere no âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1206/2001, visto que a obtenção de provas foi ordenada, não oficiosamente, mas por iniciativa de uma das partes, cumpre salientar que resulta do artigo 1.°, n.° 1, do referido regulamento que este é aplicável sempre que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro requeira quer a um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro que proceda à obtenção de provas quer a obtenção de provas diretamente noutro Estado‑Membro, pouco importando a este respeito que a iniciativa seja tomada por uma parte ou pelo próprio órgão jurisdicional.
35 Em seguida, no que toca ao argumento segundo o qual é impossível aplicar o Regulamento n.° 1206/2001 no quadro de um processo de medidas provisórias, importa constatar que, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, deste regulamento, as provas cuja obtenção é requerida se devem destinar a ser utilizadas num processo judicial já iniciado ou previsto. Portanto, o referido regulamento é aplicável não apenas no âmbito de um processo para dirimir a questão de fundo mas também durante um processo de medidas provisórias.
36 Por último, quanto às afirmações segundo as quais um perito, como o em causa no processo principal, não exerce atos de poder público e a aplicação do Regulamento n.° 1206/2001 no quadro do processo em causa iria prolongar a duração deste último, importa constatar, como salientou o advogado‑geral no n.° 32 das suas conclusões, que estas afirmações dizem respeito ao mérito do presente processo e não são, pois, suscetíveis de afetar a admissibilidade do mesmo.
37 Nestas condições, o pedido de decisão prejudicial deve ser considerado admissível.
Quanto ao mérito
38 Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001, lidos à luz do artigo 33.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, devem ser interpretados no sentido de que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que pretenda que um ato de instrução confiado a um perito seja efetuado no território de outro Estado‑Membro está obrigado a recorrer ao meio de obtenção das provas previsto por estas disposições do Regulamento n.° 1206/2001 a fim de poder ordenar este ato de instrução.
39 A título liminar, cumpre constatar que o artigo 33.° do Regulamento n.° 44/2001 não é suscetível de ter incidência na resposta a dar à questão prejudicial, pois esta última tem por objeto a obtenção das provas situadas noutro Estado‑Membro e não o reconhecimento por um Estado‑Membro de uma decisão proferida noutro Estado‑Membro. Portanto, importa, a fim de responder a esta questão, cingir‑se à interpretação dos artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001.
40 Há que realçar que, segundo o artigo 1.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 1206/2001, este último é aplicável em matéria civil ou comercial, sempre que um tribunal de um Estado‑Membro peça, nos termos da sua legislação nacional, que se proceda diretamente a um ato de instrução noutro Estado‑Membro.
41 As condições dessa execução direta de um ato de instrução são regidas pelo artigo 17.° deste regulamento. Em aplicação dos n.os 1 e 4 deste artigo, esse ato pode ser efetuado diretamente no Estado‑Membro requerido com a autorização prévia da entidade central ou da autoridade competente desse Estado. Segundo o n.° 3 do referido artigo, esse ato de instrução é efetuado por um magistrado ou por outra pessoa, por exemplo, um perito, designado segundo a legislação do Estado‑Membro do tribunal requerente.
42 A este respeito, cabe recordar, desde logo, que o Regulamento n.° 1206/2001 só é aplicável, em princípio, na hipótese de o tribunal de um Estado‑Membro decidir proceder à obtenção de provas por um dos meios previstos neste regulamento, caso em que é obrigado a seguir o procedimento relativo a esses meios (acórdão de 6 de setembro de 2012, Lippens e o., C‑170/11, n.° 28).
43 Em seguida, deve salientar‑se que, nos termos dos considerandos 2, 7, 8, 10 e 11 do Regulamento n.° 1206/2001, este tem por objetivo a obtenção simples, eficaz e célere de provas transfronteiriças. A obtenção de provas, por um tribunal de um Estado‑Membro, noutro Estado‑Membro não deve dar lugar a uma dilação dos processos nacionais. Esta é a razão pela qual o referido regulamento estabeleceu um regime que se impõe a todos os Estados‑Membros, com exceção do Reino da Dinamarca, com o fim de afastar os obstáculos que possam surgir neste domínio (v. acórdão de 17 de fevereiro de 2011, Weryński, C‑283/09, Colet., p. I‑601, n.° 62, e Lippens e o., já referido, n.° 29).
44 Além disso, como salientou o advogado‑geral no n.° 62 das suas conclusões, este regulamento não restringe as possibilidades de obtenção das provas que se encontrem noutros Estados‑Membros, mas visa reforçar estas possibilidades, favorecendo a cooperação entre os órgãos jurisdicionais neste domínio.
45 Ora, não responde a estes objetivos uma interpretação dos artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001, segundo a qual o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro estaria obrigado, para qualquer peritagem que deva ser efetuada diretamente noutro Estado‑Membro, a proceder pelo meio de obtenção de provas previsto por estes artigos. Com efeito, em determinadas circunstâncias, pode revelar‑se mais simples, mais eficaz e mais célere, para o órgão jurisdicional que ordena tal peritagem, proceder a tal obtenção das provas sem recorrer ao referido regulamento.
46 Por último, a interpretação segundo a qual o Regulamento n.° 1206/2001 não rege de forma exaustiva a obtenção transfronteiriça de provas, mas visa apenas facilitar essa obtenção permitindo o recurso a outros instrumentos com o mesmo objetivo, é corroborada pelo artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1206/2001, que autoriza explicitamente acordos ou convénios entre os Estados‑Membros, com vista a facilitar ainda mais a obtenção de provas, desde que sejam compatíveis com esse regulamento (acórdão Lippens e o., já referido, n.° 33).
47 Importa, todavia, precisar que, na medida em que o perito designado por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro se deve deslocar ao território de outro Estado‑Membro a fim de proceder à peritagem que lhe foi confiada, esta poderia, em determinadas circunstâncias, afetar a autoridade pública do Estado‑Membro no qual deve ser realizada, designadamente quando se trate de uma peritagem efetuada em locais relacionados com o exercício de tal autoridade ou em locais aos quais o acesso ou outra intervenção, por força da legislação do Estado‑Membro no qual é efetuada, estão proibidos ou só são permitidos a pessoas autorizadas.
48 Em tais circunstâncias, salvo se o órgão jurisdicional que pretende ordenar uma peritagem transfronteiriça renunciar à obtenção da referida prova e na falta de um acordo ou convénio entre os Estados‑Membros na aceção do artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1206/2001, o meio de obtenção das provas previsto nos artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do referido regulamento é o único que permite ao órgão jurisdicional de um Estado‑Membro efetuar uma peritagem diretamente noutro Estado‑Membro.
49 Resulta do exposto que um órgão jurisdicional nacional que pretenda ordenar uma peritagem que deve ser efetuada no território de outro Estado‑Membro não está necessariamente obrigado a recorrer ao meio de obtenção das provas previsto nos artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001.
50 Tal interpretação não pode ser posta em causa pelos argumentos relativos à génese deste regulamento, e designadamente pela circunstância de, no referido regulamento, não ter sido retomada a proposta de uma disposição que previa expressamente, no caso de uma peritagem transfronteiriça, a possibilidade da designação direta de um perito pelo órgão jurisdicional de um Estado‑Membro sem autorização ou informação prévia de outro Estado‑Membro.
51 Com efeito, esta disposição deve ser entendida no contexto da proposta inicial do Regulamento n.° 1206/2001, a qual só prévia um único meio de obtenção das provas, a saber, a execução de um ato de instrução pelo órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro. A referida disposição, que não permitia que uma peritagem fosse efetuada pelo órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, representava assim uma exceção a este meio único de obtenção das provas. Ora, a circunstância de tal disposição não figurar no Regulamento n.° 1206/2001 não implica que, por conseguinte, um órgão jurisdicional nacional que ordene uma peritagem transfronteiriça esteja sistematicamente obrigado a recorrer aos meios de obtenção das provas previstos por este regulamento.
52 Contrariamente ao que pretende a ProRail, esta interpretação também não é posta em causa pela conclusão do Tribunal de Justiça no n.° 23 do acórdão de 28 de abril de 2005, St. Paul Dairy (C‑104/03, Colet., p. I‑3481), segundo a qual um pedido de inquirição de uma testemunha, em circunstâncias como as que estavam em causa no processo que deu origem a esse acórdão, poderia ser utilizado como um meio de evasão às regras do Regulamento n.° 1206/2001 que regem, sob as mesmas garantias e com os mesmos efeitos para todos os sujeitos de direito, a transmissão e a execução dos pedidos efetuados por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro destinados a que se proceda a um ato de instrução noutro Estado‑Membro.
53 Como o Tribunal de Justiça já declarou, esta conclusão deve ser compreendida à luz das circunstâncias que deram origem ao referido acórdão, nas quais um pedido de inquirição provisória de uma testemunha, dirigido diretamente ao tribunal do Estado‑Membro da residência da testemunha, o qual não era, contudo, competente para conhecer do mérito do processo, poderia efetivamente ser utilizado como meio de evasão às regras do Regulamento n.° 1206/2001, na medida em que era suscetível de privar o tribunal competente, ao qual este pedido deveria ser enviado, da possibilidade de proceder à inquirição da referida testemunha segundo as regras previstas no dito regulamento (v. acórdão Lippens e o., já referido, n.° 36). Ora, as circunstâncias do presente processo distinguem‑se das do processo em que foi proferido o acórdão St. Paul Dairy, já referido, na medida em que a prova que deve ser obtida se encontra, na sua maior parte, num Estado‑Membro diferente do do órgão jurisdicional que conhece do processo, pelo que este último tem a possibilidade de aplicar o Regulamento n.° 1206/2001.
54 Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que os artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 devem ser interpretados no sentido de que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que pretenda que um ato de instrução confiado a um perito seja efetuado no território de outro Estado‑Membro não está necessariamente obrigado a recorrer ao meio de obtenção das provas previsto por estas disposições a fim de poder ordenar esse ato de instrução.
Quanto às despesas
55 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:
Os artigos 1.°, n.° 1, alínea b), e 17.° do Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial, devem ser interpretados no sentido de que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que pretenda que um ato de instrução confiado a um perito seja efetuado no território de outro Estado‑Membro não está necessariamente obrigado a recorrer ao meio de obtenção das provas previsto por estas disposições a fim de poder ordenar esse ato de instrução.
Assinaturas
* Língua do processo: neerlandês.
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
NIILO JÄÄSKINEN
apresentadas em 6 de setembro de 2012 (1)
Processo C‑332/11
ProRail NV
contra
Xpedys NV
FAG Kugelfischer GmbH
DB Schenker Rail Nederland NV
Nationale Maatschappij der Belgische Spoorwegen NV
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van Cassatie (Bélgica)]
«Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Obtenção de provas — Regulamento (CE) n.° 1206/2001 — Artigo 1.° — Âmbito de aplicação material — Artigo 17.° — Execução direta de um ato de instrução pelo órgão jurisdicional requerente — Nomeação de um perito por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro e atribuição ao mesmo de uma missão que deve ser realizada em parte no território de outro Estado‑Membro — Obrigatoriedade ou não da aplicação do mecanismo de cooperação judiciária previsto no artigo 17.° do referido regulamento»
I — Introdução
1. O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van Cassatie (Supremo Tribunal, Bélgica) requer uma interpretação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial (2).
2. Trata‑se de saber se uma perícia ordenada nesta matéria por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro (3) que deve ser realizada em parte no território deste e em parte no território de outro Estado‑Membro, deve obrigatoriamente ser realizada em conformidade com o mecanismo de cooperação judiciária previsto no artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001, no que respeita à execução direta desta última parte da missão confiada a um perito nacional.
3. Esta questão é colocada no quadro de um litígio que opõe sociedades de direito belga, alemão e neerlandês, na sequência de um acidente sofrido perto de Amesterdão por um comboio proveniente da Bélgica e com destino aos Países Baixos, que um tribunal belga foi chamado a dirimir. O referido tribunal nomeou, como medida cautelar, no cumprimento das regras de procedimento nacionais, um perito belga a quem foi confiada a missão de proceder a uma perícia, não só na Bélgica, mas também nos Países Baixos, sendo esta medida objeto de contestação por uma das sociedades neerlandesas em causa.
4. O Tribunal de Justiça deve, pois, pronunciar‑se sobre o âmbito de aplicação material do Regulamento n.° 1206/2001 bem como sobre o caráter obrigatório da sua aplicação, em particular quando um órgão jurisdicional pretende a realização de um ato de instrução noutro Estado‑Membro de forma direta e não por intermédio de um órgão jurisdicional requerido deste Estado.
5. Todavia, a questão prejudicial faz ainda referência ao princípio do reconhecimento das decisões proferidas noutros Estados‑Membros, que está enunciado no artigo 33.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (4), princípio à luz do qual o Tribunal de Justiça pode ser chamado a interpretar os artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001.
II — Quadro jurídico
A — Regulamento n.° 1206/2001
6. O preâmbulo do Regulamento n.° 1206/2001 dispõe o seguinte:
«(2) O bom funcionamento do mercado interno exige que seja melhorada e, em especial, simplificada e acelerada a cooperação entre tribunais no domínio da obtenção de provas.
[…]
(7) Dado que, para uma decisão num processo em matéria civil ou comercial pendente num Tribunal de um Estado‑Membro, é muitas vezes necessária a obtenção de provas noutro Estado‑Membro […] é necessário prosseguir a melhoria da cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas.
(8) Para que os processos judiciais em matéria civil ou comercial sejam eficazes, é necessário que os pedidos de obtenção de provas sejam transmitidos e executados diretamente e pelas vias mais rápidas entre os tribunais dos Estados‑Membros.
[…]
(15) No sentido de facilitar a obtenção de provas, deverá ser conferida aos tribunais dos Estados‑Membros, de acordo com o seu direito nacional, a possibilidade de obter provas diretamente de outro Estado‑Membro, mediante a aceitação deste último e nas condições determinadas pela entidade central ou autoridade competente do Estado‑Membro requerido.
[…]
(17) O presente regulamento prevalece sobre as disposições com o mesmo âmbito de aplicação previstas em convenções internacionais celebradas pelos Estados‑Membros. Os Estados‑Membros são livres de celebrar acordos ou convénios para facilitar ainda mais a cooperação no domínio da obtenção de provas.»
7. O artigo 1.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1206/2001, intitulado «Âmbito», dispõe:
«1. O presente regulamento é aplicável em matéria civil ou comercial, sempre que um tribunal de um Estado‑Membro requeira, nos termos da sua legislação nacional:
a) Ao tribunal competente de outro Estado‑Membro a obtenção de provas; ou
b) A obtenção de provas diretamente noutro Estado‑Membro.
2. Não será requerida a obtenção de provas que não se destinem a ser utilizadas num processo judicial já iniciado ou previsto.»
8. Os artigos 10.° a 16.°, que figuram na secção 3 do referido regulamento, fixam as modalidades de execução do ato de instrução por um órgão jurisdicional requerido de outro Estado‑Membro (método de cooperação dita «indireta»).
9. O artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1206/2001 esclarece que «[o] tribunal requerido executará o pedido de acordo com a legislação do seu Estado‑Membro».
10. O artigo 17.° do referido regulamento, que regula a obtenção de provas diretamente pelo tribunal requerente (método de cooperação dita «direta») prevê:
«1. Se o tribunal requerer a obtenção de provas diretamente noutro Estado‑Membro, apresentará nesse Estado um pedido à entidade central ou à autoridade competente […]
2. A obtenção direta de provas apenas poderá ocorrer se for feita numa base voluntária, sem recorrer a medidas coercivas.
Se a obtenção direta de provas implicar a audição de uma pessoa, o tribunal requerente informará essa pessoa de que a inquirição é executada numa base voluntária.
3. A obtenção de provas será efetuada por um magistrado ou por outra pessoa, por exemplo, um perito designado segundo a legislação do Estado‑Membro do tribunal requerente.
[…]
5. A entidade central ou a autoridade competente podem recusar a obtenção direta de provas, na medida em que:
a) O pedido não caiba no âmbito do presente regulamento, de acordo com o artigo 1.°;
b) O pedido não contenha todas as informações necessárias, de acordo com o artigo 4.°;
c) A obtenção direta de provas requerida for contrária aos princípios fundamentais da legislação do seu Estado‑Membro.
6. Sem prejuízo das condições constantes do n.° 4, o tribunal requerente executa o pedido em conformidade com a legislação do seu Estado‑Membro.»
B — O Regulamento n.° 44/2001
11. O artigo 31.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 estabelece que «as medidas provisórias ou cautelares previstas na lei de um Estado‑Membro podem ser requeridas às autoridades judiciais desse Estado, mesmo que, por força do presente regulamento, um tribunal de outro Estado‑Membro seja competente para conhecer da questão de fundo».
12. O artigo 32.° do referido regulamento, que figura no início do capítulo III, intitulado «Reconhecimento e execução», indica que «[p]ara efeitos do presente regulamento, [se] considera ‘decisão’ qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado‑Membro independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo».
13. Nos termos do artigo 33.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, «[a]s decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo».
III — Litígio no processo principal, questão prejudicial e processo no Tribunal de Justiça
14. Em 22 de novembro de 2008, um comboio de mercadorias proveniente da Bélgica e com destino a Beverwijk (Países Baixos) descarrilou perto de Amesterdão.
15. Na sequência deste acidente, foram propostas ações judiciais tanto nos órgãos jurisdicionais belgas como nos neerlandeses.
16. O litígio no processo principal, que órgãos jurisdicionais belgas foram chamados a dirimir em processo de medidas provisórias, opõe a sociedade ProRail NV (a seguir «ProRail») a quatro outras sociedades envolvidas pelo acidente acima referido, a saber, a Xpedys NV (a seguir «Xpedys»), a FAG Kugelfischer GmbH (a seguir «FAG»), a DB Schenker Rail Nederland NV (a seguir «DB Schenker») e a Nationale Maatschappij der Belgische Spoorwegen NV (Sociedade Nacional dos Caminhos de Ferro Belgas, a seguir «SNCB»).
17. A ProRail é uma sociedade com sede em Utrecht (Países Baixos) que assegura a gestão das principais vias férreas nos Países Baixos e que, nessa qualidade, celebra contratos de acesso com empresas de transporte ferroviário, nomeadamente com a DB Schenker.
18. A DB Schenker, que também tem sede em Utrecht, é uma empresa privada de transportes ferroviários cujo parque ferroviário é composto por vagões que foram inicialmente tomados de locação à SNCB, sociedade anónima de direito público com sede em Bruxelas (Bélgica).
19. Segundo a DB Schenker e a SNCB, a Xpedys, cuja sede está situada num município de Bruxelas, a saber, Anderlecht (Bélgica), retomou a qualidade da locadora dos vagões detidos pela DB Schenker a partir de 1 de maio de 2008.
20. A FAG, que tem a sua sede em Schweinfurt (Alemanha), é uma construtora de peças de vagões.
21. Em 11 de fevereiro de 2009, a transportadora, DB Schenker, requereu ao presidente do rechtbank van koophandel te Brussel (tribunal de comércio de Bruxelas), o decretamento de uma providência cautelar contra a Xpedys e a SNCB, nas qualidades respetivas de locadoras de uma parte dos vagões implicados no acidente antes mencionado, com vista a obter a nomeação de um perito. A ProRail e a FAG intervieram no processo. No decurso deste, a ProRail requereu ao referido órgão jurisdicional que indeferisse o pedido de nomeação do perito ou, caso essa nomeação viesse a ocorrer, limitasse a sua missão à avaliação da avaria sofrida pelos vagões, não ordenasse uma investigação à totalidade da rede ferroviária neerlandesa e ordenasse que o perito desempenhasse a sua missão em conformidade com as disposições do Regulamento n.° 1206/2001.
22. Em 26 de março de 2009, a ProRail propôs uma ação principal num órgão jurisdicional neerlandês, a saber, o Rechtbank Utrecht, contra a DB Shenker e a Xpedys, pedindo que a transportadora e a proprietária e locadora dos vagões acidentados fossem declaradas responsáveis pelos danos sofridos pela sua rede ferroviária e a indemnizassem a esse título.
23. Por despacho de 5 de maio de 2009, o presidente do rechtbank van koophandel te Brussel deferiu o pedido da DB Schenker e nomeou o perito, definindo a amplitude da sua missão, que deve ser efetuada em grande parte nos Países Baixos. No âmbito desta, após convidar as partes a assistir às suas diligências, o perito deve deslocar‑se ao local do acidente nos Países Baixos, bem como a todos os locais onde possa efetuar constatações úteis. Foi, além disso, chamado a determinar o fabricante e o estado de certos elementos técnicos dos vagões. Foi‑lhe igualmente pedido que desse o seu parecer sobre as avarias sofridas pelos vagões e sobre a extensão do dano. Por último, o perito deve examinar a rede e a infraestrutura ferroviárias geridas pela ProRail e pronunciar‑se sobre a questão de saber se, e em que medida, esta infraestrutura poderá ter estado igualmente na origem do acidente.
24. A ProRail interpôs recurso do referido despacho, para o hof van beroep te Brussel (tribunal de segunda instância de Bruxelas), pedindo a título principal que seja julgado improcedente o pedido de nomeação do perito ou, a título subsidiário, que a missão do perito belga seja limitada à constatação do dano, na medida em que possa ser efetuada na Bélgica, e que, no mínimo, seja ordenado que o perito apenas efetue as suas diligências nos Países Baixos unicamente no âmbito do Regulamento n.° 1206/2001.
25. Em 20 de janeiro de 2010, o hof van beroep te Brussel negou provimento ao recurso, com base no facto de o Regulamento n.° 1206/2001 não ser aplicável, posto que, por um lado, nenhuma das hipóteses visadas no seu artigo 1.° se verificava no caso vertente e, por outro, a afirmação da ProRail segundo a qual um perito só podia ser encarregado de efetuar uma investigação nos Países Baixos no âmbito do referido regulamento era desprovida de fundamento.
26. A ProRail recorreu em cassação desta decisão do hof van beroep te Brussel para o órgão jurisdicional de reenvio, invocando a violação de disposições do direito da União, em particular, dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 e do artigo 31.° do Regulamento n.° 44/2001.
27. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que decorre dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 que sempre que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro pretenda proceder a um ato de instrução — como uma investigação efetuada por um perito — diretamente noutro Estado‑Membro, deve ser pedida uma autorização prévia nesse último Estado. Menciona que os fundamentos de recurso aduzidos pela ProRail também se baseiam numa leitura a contrario do artigo 31.° do Regulamento n.° 44/2001, do qual resulta que tal ato de instrução não produz efeitos extraterritoriais na falta de uma autorização emanada do Estado no qual deve ser realizado. Por fim, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a incidência, no âmbito do presente caso, do artigo 33.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, segundo o qual as decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros sem necessidade de recurso a qualquer processo.
28. Neste contexto, por decisão que deu entrada em 30 de junho de 2011, o Hof van Cassatie decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Devem os artigos 1.° e 17.° do Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial, atendendo, designadamente, à legislação europeia sobre o reconhecimento e a execução de decisões judiciais em matéria civil e comercial e ao princípio expresso no artigo 33.°, n.° 1, do Regulamento [n.° 44/2001], de que as decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros sem necessidade de recurso a qualquer processo, ser interpretados no sentido de que o tribunal que nomeia um perito judicial, cuja missão deve ser desempenhada em parte no território do Estado‑Membro a que esse tribunal pertence e em parte também noutro Estado‑Membro, deve recorrer, para a execução desta última parte da missão do perito, única e exclusivamente ao método instituído pelo artigo 17.°, ou no sentido de que o perito judicial nomeado pelo primeiro Estado‑Membro também pode, fora do disposto no Regulamento n.° 1206/2001, ser incumbido de uma investigação que tem de ser parcialmente realizada noutro Estado‑Membro da União Europeia?»
29. Foram apresentadas ao Tribunal de Justiça observações escritas conjuntamente pela ProRail, a Xpedys, a DB Schenker e a SNCB (a seguir «Xpedys e o.»), pelos Governos belga, checo, alemão e português, pela Confederação Suíça, bem como pela Comissão Europeia. Não foi realizada audiência.
IV — Análise
A — Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial
30. As Xpedys e o. põem em causa a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial alegando que apresenta um caráter puramente hipotético e é desprovido de pertinência para efeitos da resolução do litígio no processo principal, visto que o Regulamento n.° 1206/2001 não é aplicável ao caso em apreço.
31. Em apoio da sua contestação, as Xpedys e o. invocam quatro fundamentos. O primeiro deles assenta no facto de a iniciativa da perícia transfronteiriça ter, neste caso, sido tomada por uma das partes em litígio e não pelo juiz uma vez que a redação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 impõe que esta iniciativa emane de um «órgão jurisdicional» do Estado‑Membro requerente. O segundo baseia‑se no facto de ter sido unicamente pedida a nomeação de um perito ao juiz das medidas provisórias, ao passo que estes artigos e o sétimo considerando do referido regulamento exigem que o ato de instrução seja necessário de modo a permitir que o juiz decida do mérito. O terceiro assenta na ideia de que não há lugar à aplicação deste regulamento, quando, como no caso em apreço, não esteja em causa o exercício do poder público no território de outro Estado‑Membro, não sendo, pois, necessária a autorização deste para a execução da missão de perícia. O quarto tem por base a constatação de que a aplicação do Regulamento n.° 1206/2001 no quadro do litígio no processo principal prolongou a duração do processo, o que é diametralmente oposto aos objetivos enunciados no segundo considerando do referido regulamento, ou seja, a simplificação e a aceleração da obtenção de provas.
32. Entendo que estes dois últimos fundamentos remetem para considerações que saem da problemática de uma eventual inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial e inserem‑se mais precisamente no mérito dos presentes autos.
33. No que respeita às duas primeiras críticas formuladas pelas Xpedys e o., recordo que constitui jurisprudência assente (5) que, no quadro de um processo de reenvio prejudicial, o órgão jurisdicional nacional tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão, como a pertinência da questão que submete. Uma vez que esta última é relativa à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir, salvo quando seja manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou quando o problema for de natureza hipotética.
34. Ora, creio que tal não é presentemente o caso. Com efeito, o pedido de decisão prejudicial expõe de modo bastante as razões pelas quais a interpretação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 se pode revelar útil para a decisão do litígio na causa principal, na medida em que o acórdão a proferir pelo Tribunal de Justiça esclarecerá o órgão jurisdicional de reenvio sobre a questão de saber se a parte da perícia diligenciada nos Países Baixos para determinar a origem do acidente ferroviário em causa no processo principal e a amplitude da avaria deste resultante, deve ser efetuada com observância das regras de procedimento belga ou do Regulamento n.° 1206/2001.
35. Acrescento que não creio que os artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 imponham de modo algum que a decisão de proceder a um ato de instrução diretamente noutro Estado‑Membro tenha sido tomada oficiosamente pelo órgão jurisdicional do Estado requerente que a ordena. Não excluem que tal ato tenha originalmente sido solicitado a este órgão jurisdicional pelas partes em litígio, o que, na prática, é o que geralmente sucede, tendo uma delas interesse em demonstrar a existência de factos que são contestados pela outra para alicerçar a justeza das suas pretensões.
36. Por outro lado, considero que é indiferente que o ato de instrução tenha sido decidido, não no decurso da ação principal, mas no âmbito de uma providência cautelar que tem como único objeto a nomeação de um perito. O artigo 1.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1206/2001 exige unicamente que os meios de prova cuja obtenção é requerida se «destinem a ser utilizados num processo judicial já iniciado ou previsto». Como corretamente indicou a Comissão no seu guia prático, este último termo permite incluir os atos de instrução prévios ao eventual início da ação principal, no decurso da qual os elementos de prova serão efetivamente utilizados, nomeadamente nos casos em que seja necessário colher provas suscetíveis de posteriormente se tornarem inacessíveis (6). Inserindo‑se uma medida de instrução transfronteiriça in futurum, como a em causa no processo principal (7), no âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1206/2001, o pedido de decisão prejudicial não é, pois, inadmissível a este título.
B — Quanto ao mérito
1. Quanto à falta de incidência das disposições do Regulamento n.° 44/2001
37. Segundo os termos da sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio solicita a interpretação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001. Contudo, faz também referência às disposições do Regulamento n.° 44/2001 e, em particular, ao princípio do reconhecimento mútuo e de pleno direito das decisões proferidas em matéria civil e comercial pelos órgãos jurisdicionais dos vários Estados‑Membros, que está enunciado no artigo 33.°, n.° 1, deste último regulamento (8). Assim interroga o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se os dois primeiros artigos devem ser interpretados tendo em conta, «nomeadamente», as disposições do Regulamento n.° 44/2001 e o referido princípio.
38. Decorre da decisão de reenvio que a conjugação entre o Regulamento n.° 1206/2001 e o Regulamento n.° 44/2001 foi da iniciativa da ProRail, cujo recurso, segundo o Hof van Cassatie, invoca a violação, não apenas dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001, mas ainda do artigo 31.° do Regulamento n.° 44/2001, o qual prevê que podem ser requeridas medidas provisórias ou conservatórias às autoridades judiciárias de um Estado‑Membro mesmo quando outro órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro seja competente para conhecer do mérito. Verifica‑se que a ProRail pretende deduzir deste artigo que o poder de ordenar uma medida de perícia pertence unicamente aos órgãos jurisdicionais do lugar onde esta deve ser efetuada e, a contrario, que tal medida não produz efeitos extraterritoriais na falta de uma autorização emanada do Estado‑Membro no qual este ato de instrução deve ser realizado.
39. A Confederação Suíça, interessada por uma eventual interpretação do Regulamento n.° 44/2001 pelo Tribunal da Justiça, devido à semelhança existente entre as disposições deste e as da Convenção de Lugano (9), tomou unicamente posição a este respeito. Defende que a medida através da qual um órgão jurisdicional encarrega um perito de realizar uma investigação no território de outro Estado‑Membro nem é uma medida provisória ou conservatória, na aceção do artigo 31.° do Regulamento n.° 44/2001, posto que tal medida não pode produzir efeitos extraterritoriais, nem uma decisão suscetível de ser objeto de reconhecimento ou de execução na aceção do artigo 32.° deste mesmo regulamento (10).
40. Todavia, não sendo nenhum destes artigos expressamente visado pelo órgão jurisdicional de reenvio na questão prejudicial que submeteu ou nos fundamentos que invocou em apoio da mesma, considero que o Tribunal de Justiça não se deve pronunciar sobre esta matéria, em conformidade com jurisprudência assente (11).
41. No que diz respeito ao artigo 33.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, única disposição deste regulamento que é referida na questão prejudicial, considero, como as partes no processo principal e os Governos dos Estados‑Membros que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, que este texto não é suscetível de fornecer elementos adequados para proceder à interpretação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 no caso em apreço.
42. Com efeito, a problemática suscitada pelo presente caso respeita unicamente ao âmbito e às modalidades de aplicação do Regulamento n.° 1206/2001 e não do Regulamento n.° 44/2001. Dado que o primeiro destes instrumentos constitui, em relação ao segundo, lex posterior (12), bem como lex specialis no que diz respeito à cooperação judiciária no domínio específico da obtenção de provas, não é, em meu entender, pertinente interpretar o Regulamento n.° 1206/2001 à luz do Regulamento n.° 44/2001 (13).
2. Quanto à interpretação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001
43. Saliento desde já que é inegável que um ato de instrução como a perícia judiciária está abrangido pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.° 1206/2001, apesar de o conceito da prova cuja obtenção pode ser conseguida em virtude deste regulamento (14) não estar por este definido (15). O mesmo resulta claramente do artigo 17.°, n.° 3, do referido regulamento, nos termos do qual um ato de instrução pode ser realizado diretamente noutro Estado‑Membro pelo órgão jurisdicional requerente, o qual pode ser representado por qualquer pessoa, «por exemplo, um perito» (16), designado segundo a legislação do Estado‑Membro do tribunal requerente.
44. A questão que se coloca no presente caso é a de saber se resulta de uma leitura conjugada dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 que quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro decida proceder a um ato de instrução, tal como uma missão de investigação confiada a um perito diretamente no território de outro Estado‑Membro, deve necessariamente pedir a autorização prévia deste Estado em conformidade com o referido artigo 17.° ou se pode decidir ordenar tal perícia com base nas regras de processo do foro nacional (17).
45. As opiniões dos observadores que tomaram posição sobre esta matéria são divergentes. Ao passo que a ProRail e os Governos dos Estados‑Membros que intervieram no processo no Tribunal de Justiça sustentam que importa em tal caso aplicar unicamente o artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001, as Xpedys e o. e a Comissão defendem que devem permanecer possíveis, em determinados casos concretos, outras modalidades de execução direta de um tal ato de instrução.
46. Realço que existe uma proximidade, mas não uma identidade, entre a presente problemática e a que foi submetida ao Tribunal de Justiça no processo Lippens e o. (18), ainda pendente, no qual apresentei igualmente conclusões. Embora o referido processo diga respeito à interpretação de disposições do Regulamento n.° 1206/2001 e, em particular, ao caráter obrigatório ou não da aplicação dos dois mecanismos de cooperação — um direto e outro indireto — que o mesmo prevê, o que está em jogo é um pouco diferente. Com efeito, no referido processo Lippens e o., o litígio principal dizia respeito à audição, ordenada por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, de testemunhas residentes noutro Estado‑Membro e que foram chamadas a comparecer perante aquele. Em contrapartida, uma medida de perícia que, como no presente caso, deve ser realizada noutro Estado‑Membro, é suscetível de configurar uma intrusão no território deste. Todavia, considero que o raciocínio a seguir no tocante à aplicabilidade sistemática ou não do Regulamento n.° 1206/2001 deve ser a mesma, qualquer que seja o tipo de ato de instrução em causa.
47. O princípio subjacente neste domínio é o da soberania territorial dos Estados‑Membros, como já indiquei nas conclusões apresentadas no processo Lippens e o., já referido (19). Tradicionalmente, o exercício do poder público tem um caráter territorial. Não é, em princípio, possível exercê‑lo fora do Estado‑Membro ao qual pertencem o órgão jurisdicional ou outra autoridade nacional pertencem, salvo com o acordo do «poder soberano» local, ou seja, com o acordo das autoridades do outro Estado‑Membro no território do qual este poder deve ser exercido.
48. O Regulamento n.° 1206/2001 procura lutar contra esta compartimentação dos poderes no seio da União, facilitando a circulação das pessoas que devem participar em atos de instrução e, por este meio, a transmissão de provas de um Estado‑Membro para outro, na base de uma confiança mútua. Em particular, concluiu‑se que a realização de uma medida de perícia noutro Estado‑Membro fora deste quadro poderia ser impossível devido ao facto de determinadas legislações nacionais limitarem a participação ativa de um membro ou de um representante do órgão jurisdicional requerente (20).
49. Vistos os dois principais objetivos deste regulamento, a saber, em primeiro lugar, simplificar a cooperação entre os Estados‑Membros e, em segundo lugar, acelerar a obtenção de provas (21), entendo que, quando não seja concretamente necessário exercer o poder judiciário noutro Estado‑Membro para obter um meio de prova, não é obrigatório que o órgão jurisdicional que ordena um ato de instrução ponha em marcha um dos dois mecanismos de cooperação judiciária simplificada que são previstos pelo referido regulamento (22).
50. A redação atual dos dois artigos do Regulamento n.° 1206/2001 cuja interpretação é pedida pelo órgão jurisdicional de reenvio não permite, em meu entender, contradizer este ponto de vista. O artigo 1.°, n.° 1, alínea b), do referido regulamento indica que é unicamente «[quando] um tribunal de um Estado‑Membro […] requeira […] a obtenção de provas diretamente noutro Estado‑Membro» (23) que devem ser aplicadas as disposições pertinentes do referido regulamento, a saber, as do artigo 17.° deste regulamento (24). Este prevê que a execução de tal ato pelo tribunal requerente que intervém neste quadro deve ser precedida de um pedido apresentado à entidade central ou à autoridade competente do Estado‑Membro no qual as provas devem ser obtidas (25). Pelo contrário, quando um órgão jurisdicional entenda não recorrer a este método de cooperação judiciária por considerar que a ajuda das autoridades locais não é indispensável para que o ato de instrução que diligencia seja levado a bom termo, não está obrigado a respeitar as formalidades previstas pelo artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001.
51. Resulta dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.° 1206/2001 que se tinha inicialmente previsto, na proposta de texto redigida pela República Federal da Alemanha (26), que as medidas de perícia que fossem realizadas diretamente noutro Estado‑Membro seriam objeto de um tratamento específico. Com efeito, o artigo 1.°, n.° 3, da referida proposta previa que uma perícia podia ser efetuada no território de outro Estado‑Membro sem autorização e mesmo sem notificação prévia ao mesmo pelo órgão jurisdicional que tivesse decidido ordenar esse ato de instrução (27). Não obstante um relatório concordante do Parlamento (28), bem como o parecer do Comité Económico e Social (29) e o parecer posterior do Parlamento (30), igualmente conformes, esta disposição foi suprimida da versão final adotada em 28 de maio de 2001 pelo Conselho (31).
52. Contrariamente ao que certos observadores afirmam, estes elementos a respeito da génese do Regulamento n.° 1206/2001 não põem em causa a análise que proponho que o Tribunal de Justiça acolha. Apesar de finalmente não ter sido a abordagem inicial a seguida pelo legislador da União, não é inconcebível que determinadas perícias a realizar noutro Estado‑Membro possam, não obstante, estar excluídas do âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1206/2001, a saber, aquelas para as quais os peritos foram designados para efeitos da realização de uma missão que não requer a colaboração das autoridades judiciárias locais para poder ser plenamente executada.
53. A jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça também não desmente a minha análise. Observo que o acórdão St. Paul Dairy (32) é invocado pela ProRail, a qual considera que este acórdão impõe a obrigação da aplicação do Regulamento n.° 1206/2001 «para obter uma prova (através de uma inquirição de testemunha e de um acesso aos locais, no caso em apreço)». Porém, esta leitura do referido acórdão é em meu entender errada, como já demonstrei nas conclusões apresentadas no processo Lippens e o. (33).
54. É verdade que o processo de execução direta previsto no artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 só pode ser posto em marcha numa base voluntária (34), contrariamente ao processo de execução indireta, no âmbito do qual são possíveis medidas coercivas em aplicação do artigo 13.° deste regulamento. Não obstante, as pessoas envolvidas numa perícia podem aceitar submeter‑se espontaneamente a esta medida e cooperar com o perito, mesmo não sendo este o caso na causa no tocante à ProRail.
55. O critério determinante para saber em que casos o Regulamento n.° 1206/2001 deve necessariamente ser aplicado por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é, em meu entender, o que se prende com a necessidade que esta possa ter de obter a colaboração, não das partes no litígio, mas dos poderes públicos do outro Estado‑Membro no qual a perícia deve ser realizada.
56. Assim, creio que é necessário introduzir uma distinção consoante o perito nomeado por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro deva ou não utilizar as prerrogativas do poder público de outro Estado‑Membro, em função da apreciação em concreto que será realizado por esse órgão jurisdicional.
57. Se um perito se encontra numa situação tal que está encarregado de cumprir tarefas de inspeção e de retirar conclusões técnicas em condições que são permitidas a qualquer um, porque se referem a coisas, dados ou lugares acessíveis ao público, creio que não é necessário que tais atos de instrução sejam executados na observância do procedimento previsto no artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001. Com efeito, os atos que não põem em causa a soberania do Estado‑Membro no qual os elementos de prova devem ser colhidos e não requerem pois, o auxílio das autoridades judiciárias locais podem não ser abrangidos pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1206/2001. Em meu entender, existe neste caso a simples faculdade de por em marcha o mecanismo de cooperação instaurado pelo referido artigo 17.° Se o órgão jurisdicional que ordena a perícia considera que este é mais oportuno do que recorrer às regras processuais nacionais, pode empregar este mecanismo, mas não está obrigado a tal e pode dispensá‑lo se não tiver necessidade da cooperação e do poder coercivo do Estado‑Membro do local onde deve ser realizada a missão confiada.
58. Nas observações que apresentou ao Tribunal de Justiça, a Comissão foi também claramente da opinião de que o Regulamento n.° 1206/2001 não tem por objetivo excluir ou impor a priori determinadas formas ou modalidades de obtenção de provas. Daí deduziu corretamente que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro deve ser livre de ordenar que seja realizada uma perícia noutro Estado‑Membro sem seguir o procedimento previsto no artigo 17.° do referido regulamento, portanto sem pedir o auxílio das autoridades do outro Estado‑Membro, «na medida em que» a realização desta parte da perícia não exija a colaboração das autoridades do Estado‑Membro no qual a mesma deve ser realizada.
59. Em contrapartida, se para cumprir a sua missão, o perito tem necessidade de aceder a objetos, informações ou locais que não são públicos, precisa nesse caso de obter o auxílio das autoridades do outro Estado‑Membro. Nesta hipótese, na qual há um exercício do poder judiciário com um efeito externo, a saber, no território de outro Estado‑Membro, o procedimento de execução direta (35) previsto no artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 deve necessariamente ser aplicado, a fim de obter a cooperação do Estado‑Membro em causa e de beneficiar de todas as atribuições do poder daí resultantes (36).
60. Creio ser este o caso em circunstâncias como as do litígio no processo principal. Com efeito, o acesso às instalações da rede ferroviária, que é certamente restrito por disposições legislativas, regulamentares ou administrativas, designadamente, por razões de regulação do tráfego e sobretudo de segurança, requer o emprego de prerrogativas do poder público. Embora a ProRail disponha do uso desta rede enquanto gestora da infraestrutura em causa, o eventual acordo desta sociedade de direito privado (37) não basta, visto o caráter público dos atos necessários para a realização de tal missão. Como entendo que os órgãos jurisdicionais belgas têm necessidade da colaboração das autoridades neerlandesas para que a missão confiada ao perito possa ser executada diretamente no território do Reino dos Países Baixos, considero que o mecanismo de cooperação previsto no artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 deveria ter sido utilizado no caso em apreço (38).
61. Não pode existir o risco da perda do efeito útil do artigo 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 caso a interpretação que proponho seja acolhida pelo Tribunal de Justiça. Observo que a ProRail sustenta que a adoção do referido regulamento não teria interesse se os Estados‑Membros não estivessem vinculados pelo mesmo. No entanto, entendo que, colocada nestes termos, a problemática seria distorcida. O Regulamento n.° 1206/2001 tem efetivamente um efeito obrigatório, mas unicamente no domínio correspondente ao seu âmbito de aplicação, ou seja, é, a meu ver, unicamente aplicável nos casos em que a colaboração das autoridades de outro Estado‑Membro é concretamente necessária para permitir ou melhorar a obtenção de provas, e, portanto, é pedida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro.
62. Entendo que seria errado e conduziria mesmo a um contrassenso considerar, como defende a ProRail, que, em razão da entrada em vigor do Regulamento n.° 1206/2001, já não é possível nomear peritos encarregados de efetuar inquéritos no estrangeiro sem a aplicação sistemática dos mecanismos previstos pelo referido regulamento. Com efeito, o Regulamento n.° 1206/2001 tem por finalidade, não restringir as possibilidades de ação dos órgãos jurisdicionais em matéria de obtenção de provas, excluindo os outros métodos de instrução, mas, pelo contrário, reforçar estas possibilidades, criando uma alternativa que favorece a cooperação entre estas jurisdições quando tal é necessário, ou seja, quando o juiz do processo considere que as vias abertas por este regulamento são as mais eficazes.
63. Tal opção decorre nomeadamente do facto de, por força do artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1206/2001 (39), as convenções internacionais continuarem a ser aplicáveis entre os Estados‑Membros caso permitam uma execução dos atos de instrução que seja «mais» eficaz que os mecanismos por este previstos, sem prejuízo de deverem ser compatíveis com as disposições do referido regulamento, como salientei já nas conclusões apresentadas no processo Lippens e o., já referido.
64. Acrescento que esta abordagem funcional da interpretação dos artigos 1.° e 17.° do Regulamento n.° 1206/2001 é conforme à conceção adotada num texto posterior, a saber, o Regulamento (CE) n.° 861/2007, que estabelece um processo europeu para ações de pequeno montante (40), cujo artigo 9.° prevê que o órgão jurisdicional deve determinar os meios de produção de prova e quais as provas necessárias para a sua tomada de decisão de acordo com as regras aplicáveis à admissibilidade da prova e que, a este título, deve escolher os métodos de produção de prova mais simples e mais práticos. Creio que o mesmo deve valer no tocante às modalidades de aplicação do Regulamento n.° 1206/2001.
V — Conclusão
65. À luz das precedentes considerações, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão colocada pelo Hof van Cassatie do seguinte modo:
«Os artigos 1.° e 17.° do Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial, devem ser interpretados no sentido de que, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro ordena um ato de instrução confiado a um perito, cuja missão deve ser desempenhada em parte no território do Estado‑Membro a que esse órgão jurisdicional pertence e em parte também noutro Estado‑Membro, esse órgão jurisdicional pode optar por nomear o perito, para efeitos de proceder diretamente a esta última parte da sua missão, quer utilizando o processo de execução direta pelo órgão jurisdicional requerente que está previsto no referido artigo 17.°, quer não aplicando as disposições deste regulamento, na medida em que a realização dessa parte da perícia não necessite da cooperação das autoridades do Estado‑Membro onde a mesma deve ter lugar.»
1 — Língua original: francês.
2 — JO L 174, p. 1.
3 — Nas presentes conclusões, o conceito de «Estado‑Membro» refere‑se aos Estados‑Membros da União Europeia, com exceção do Reino da Dinamarca, em conformidade com o artigo 1.°, n.° 3, do Regulamento n.° 1206/2001.
4 — JO 2001, L 12, p. 1.
5 — V., nomeadamente, acórdãos de 16 de junho de 2011, Gebr. Weber e Putz (C‑65/09 e C‑87/09, Colet., p. I‑5257, n.os 35 e segs.), e de 21 de junho de 2012, Susisalo e o. (C‑84/11, n.os 16 e 17).
6 — N.° 10 do guia prático sobre a aplicação do regulamento relativo à obtenção de provas, elaborado pelos serviços da Comissão em consulta com a Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial (a seguir «guia prático», documento acessível no seguinte endereço: http://ec.europa.eu/civiljustice/evidence/evidence_ec_guide_pt.pdf).
7 — O Tribunal de Justiça já foi questionado a respeito de reenvios prejudiciais relativos a este tipo de medidas. No que respeita ao artigo 24.° da Convenção assinada em Bruxelas em 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução das decisões judiciais em matéria civil e comercial (a seguir «Convenção de Bruxelas), v. acórdão de 28 de abril de 2005, St. Paul Dairy (C‑104/03, Colet., p. I‑3481, n.° 13), bem como as conclusões apresentadas pelo advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer neste processo (especificamente, n.° 32, a respeito dos possíveis objetivos dessas medidas à luz das legislações dos Estados‑Membros). No que respeita ao Regulamento n.° 1206/2001, v. conclusões apresentadas pela advogada‑geral J. Kokott no processo que deu origem ao despacho de cancelamento de 27 de setembro de 2007, Tedesco (C‑175/06, Colet., p. I‑7929, especialmente, n.os 76 e segs.)
8 — O décimo sexto considerando do Regulamento n.° 44/2001 enuncia que «[a] confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado‑Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, exceto em caso de impugnação».
9 — Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial celebrada em Lugano em 16 de setembro de 1988 (JO 1988, L 319, p. 9), conforme revista pela Convenção celebrada em 30 de outubro de 2007 [v. decisão 2007/712/CE do Conselho, de 15 de outubro de 2007, relativa à assinatura, desta última em nome da Comunidade (JO L 339, p. 1)], entrada em vigor em 1 de maio de 2011, que vincula a Comunidade Europeia, o Reino da Dinamarca, a República da Islândia, o Reino da Noruega e a Confederação Suíça.
10 — A este respeito, baseia‑se, por analogia, no relatório de P. Schlosser sobre a Convenção de 9 de outubro de 1978, relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte à Convenção de Bruxelas, antes referida, bem como no protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça (JO 1979, C 59, p. 71; v., especificamente, n.° 187), sendo o artigo 25.° desta convenção equivalente ao referido artigo 32.°
11 — V., nomeadamente, acórdãos de 17 de julho de 1997, Affish (C‑183/95, Colet., p. I‑4315, n.° 24), e de 14 de dezembro de 2000, AMID (C‑141/99, Colet., p. I‑11619, n.° 18).
12 — No n.° 61 das conclusões apresentadas no processo St. Paul Dairy, já referidas, o advogado‑geral D. Ruiz‑Jarabo Colomer menciona que, «[q]uanto à possível vigência residual do Regulamento n.° 44/2001, o primado do novo ato [Regulamento n.° 1206/2001] baseia‑se no princípio da sucessão das normas jurídicas (lex posterior derogat priori)».
13 — V., por analogia, o estudo realizado a pedido do Parlamento Europeu intitulado Interprétation de l’exception d’ordre public telle que prévue par les instruments du droit international privé et du droit procédural de l’Union européenne, Bruxelas, 2011, segundo o qual «existe uma tendência manifesta à remissão cruzada entre os diversos instrumentos no que respeita à interpretação das disposições de ordem pública. […] Porém, qualquer transferência requer circunstâncias factuais e jurídicas subjacentes semelhantes», o que não se verifica que seja o caso no que respeita aos Regulamentos n.° 44/2001 e n.° 1206/2001 (disponível na Internet no endereço: http://www.europarl.europa.eu/studies, documento 453.189, p. 14 e 137).
14 — No seu guia prático, já referido, a Comissão indicou que este conceito «inclui, por exemplo, a audição de testemunhas, das partes ou de peritos, a apresentação de documentos, as verificações, o apuramento dos factos […]» (n.° 8, bem como, a respeito das perícias, n.os 17, 37 e 55).
15 — Esta falta de definição suscita na prática, vários problemas, particularmente no que diz respeito às medidas de perícia, segundo o relatório da Comissão ao Conselho, ao Parlamento e ao Comité Económico e Social Europeu sobre a aplicação do Regulamento n.° 1206/2001 [COM(2007) 769 final, n.° 2.9].
16 — V., igualmente, desta feita a respeito do mecanismo de execução indireta dos atos de instrução, artigo 12.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1206/2001.
17 — Recordo que, na causa principal, a perícia deve ser realizada principalmente no território neerlandês e foi ordenada por um órgão jurisdicional belga com base no artigo 962.° do Código Judiciário belga, o qual prevê que «[o] juiz pode, com vista à resolução de um litígio que lhe seja submetido, ou em caso de ameaça objetiva e atual de surgimento de um litígio, encarregar peritos de proceder a constatações ou dar pareceres de ordem técnica».
18 — Acórdão de 6 de setembro de 2012 (C‑170/11).
19 — V. n.° 54, bem como as fontes referidas na nota 40 das referidas conclusões.
20 — Assim, na Itália, no Luxemburgo e na Suécia tal participação ativa é recusada, segundo a nota do Conselho, de 28 de julho de 2000, que faz a síntese das respostas dadas pelas delegações dos Estados‑Membros ao questionário sobre um eventual instrumento da União destinado a melhorar a cooperação entre os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial (10651/00 JUSTCIV 85, p. 10, n.° 9).
21 — Como recorda o relatório da Comissão de 5 de dezembro de 2007, antes referido. V., ainda, segundo considerando do Regulamento n.° 1206/2001.
22 — Para uma exposição destes dois métodos de cooperação judiciária, v., nomeadamente, n.° 32 das conclusões apresentadas no processo Lippens e o., já referidas.
23 — O sublinhado é meu.
24 — Estas disposições são anunciadas no décimo quinto considerando do Regulamento n.° 1206/2001.
25 — Sobre as atribuições respetivas das referidas entidades central e autoridade competente, v. artigo 3.°, n.os 1 e 3, do Regulamento n.° 1206/2001.
26 — Iniciativa da República Federal da Alemanha tendo em vista a adoção de um regulamento do Conselho relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil e comercial (JO 2000, C 314, p. 1).
27 — «Não deve, regra geral, ser requerida a obtenção de provas se o tribunal de um Estado‑Membro tiver intenções de proceder à recolha noutro Estado‑Membro por intermédio de um perito. Neste caso, o perito pode ser designado diretamente pelo tribunal deste Estado‑Membro, sem ser necessário obter uma autorização prévia ou informação do outro Estado‑Membro requerido».
28 — Esta disposição, ao contrário de outras, não foi objeto de proposta de alteração pelo Parlamento no seu relatório de 27 de fevereiro de 2001 sobre a referida proposta alemã, cuja exposição de motivos refere unicamente que este «artigo 1.°, n.° 3, prevê que o regulamento não é aplicável caso o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro pretenda que um perito proceda a inquéritos noutro Estado‑Membro. Neste caso, o perito pode ser nomeado diretamente pelo órgão jurisdicional, sem que seja necessária qualquer autorização» (ata final da reunião 298.394, A5‑0073/2001, p. 10, n.° 1.3.1).
29 — Parecer do Comité Económico e Social publicado em 11 de maio de 2001 (JO C 139, p. 10).
30 — Parecer do Parlamento em leitura única, emitido em 14 de março de 2001 (A5‑0073/2001, JO C 343, p. 184).
31 — O Conselho já tinha previsto esta modificação na versão revista do projeto de regulamento que foi publicada em 16 de março de 2001, sem explicação sobre as razões da supressão em causa (6850/01 JUSTCIV 28, p. 7).
32 — Já referido na nota 7.
33 — V. n.° 36 das minhas conclusões já referidas.
34 — Em conformidade com o n.° 2 do artigo 17.°
35 — O órgão jurisdicional requerente pode, em alternativa, recorrer ao processo de execução indireta previsto nos artigos 10.° e segs. do Regulamento n.° 1206/2001 caso não pretenda absolutamente proceder ele próprio ao ato de instrução.
36 — Segundo o estudo relativo à aplicação do Regulamento n.° 1206/2001 realizado em 2007 a pedido da Comissão (acessível na Internet em língua inglesa no endereço: http://ec.europa.eu/civiljustice/publications/docs/final_report_ec_1206_2001_a_09032007.pdf), embora o artigo 17.°, n.° 3, do referido regulamento permita a designação de um perito para representar o órgão jurisdicional requerente, «when it comes to determining who can take evidence it should be borne in mind that in those cases where the presence of a judge is required, if the judge of the requesting State does not agree to travel to the other Member State, he will need to ask for the foreign court’s help» (p. 88, n.° 4.1.10.2).
37 — O seu acordo poderia ser dado pela interessada sob a pressão da possibilidade de que um órgão jurisdicional belga que deva conhecer do mérito da causa no processo principal venha seguidamente a retirar consequências negativas da falta de cooperação da sua parte. V., por analogia, n.° 64 das minhas conclusões no processo Lippens e o., já referido.
38 — Tanto mais quanto existe um risco de sobreposição entre os inquéritos realizados por um perito no âmbito de um processo civil, como no caso em apreço, e os efetuados por um organismo especial que estão previstos a respeito dos acidentes graves ou potencialmente graves nos artigos 19.° a 24.° ‑ sobretudo no artigo 20.°, n.° 2, alínea a) — e no anexo V da Diretiva 2004/49/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 abril de 2004, relativa à segurança dos caminhos de ferro da Comunidade, e que altera a Diretiva 95/18/CE do Conselho relativa às licenças das empresas de transporte ferroviário e a Diretiva 2001/14/CE relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária, à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária e à certificação da segurança (diretiva relativa à segurança ferroviária) (JO L 164, p. 44).
39 — V., também, décimo sétimo considerando deste mesmo regulamento.
40 — Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007 (JO L 199, p. 1). O vigésimo considerando deste regulamento também enuncia que «[o] órgão jurisdicional deverá recorrer aos meios mais simples e económicos de produção de prova».