Processo C‑251/12
Christian Van Buggenhout
e
Ilse Van de Mierop
contra
Banque Internationale à Luxemburgo SA
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal de commerce de Bruxelles)
«Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.° 1346/2000 — Processos de insolvência — Artigo 24.°, n.° 1 — Cumprimento de uma obrigação ‘a favor de devedor sujeito a um processo de insolvência’ — Pagamento feito a um credor deste devedor»
Sumário do acórdão
1. Cooperação judiciária em matéria civil — Processos de insolvência — Regulamento n.° 1346/2000 — Cumprimento de uma obrigação a favor de devedor — Norma de direito substantivo
(Regulamento n.° 1346/2000 do Conselho, artigo 24.°)
2. Direito da União Europeia — Interpretação — Métodos — Interpretação literal, sistemática e teleológica
3. Cooperação judiciária em matéria civil — Processos de insolvência — Regulamento n.° 1346/2000 — Cumprimento de uma obrigação a favor de devedor — Âmbito de aplicação — Pagamento feito a um credor de um devedor sujeito a um processo de insolvência — Exclusão
(Regulamento n.° 1346/2000 do Conselho, artigo 24.°, n.° 1)
(cf. n.° 23)
(cf. n.os 26, 27)
3. O artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangido pelo âmbito de aplicação dessa disposição um pagamento feito, por ordem de um devedor sujeito a um processo de insolvência, a um credor seu.
Com efeito, as pessoas protegidas pela referida disposição são os devedores do devedor insolvente que, quer diretamente quer por intermédio de um terceiro, cumprem de boa‑fé uma obrigação a favor deste último.
Assim, a circunstância de que, se trata de um banco que, por ordem e por conta do devedor insolvente, efetuou o pagamento, ainda que tenha cumprido uma obrigação contratual para com o devedor insolvente, não a cumpriu «a favor de» este último na aceção do artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000, dado que o referido devedor não era o beneficiário do tal pagamento.
(cf. n.os 31, 32, 38 e disp.)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)
«Cooperação judiciária em matéria civil – Regulamento (CE) n.° 1346/2000 – Processos de insolvência – Artigo 24.°, n.° 1 – Cumprimento de uma obrigação ‘a favor de devedor sujeito a um processo de insolvência’ – Pagamento feito a um credor deste devedor»
No processo C‑251/12,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo tribunal de commerce de Bruxelles (Bélgica), por decisão de 14 de maio de 2012, entrado no Tribunal de Justiça em 22 de maio de 2012, no processo
Christian Van Buggenhout e Ilse Van de Mierop, na qualidade de administradores da insolvência da Grontimmo SA,
contra
Banque Internationale à Luxembourg SA,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),
composto por: M. Ilešič (relator), presidente de secção, E. Jarašiūnas, A. Ó Caoimh, C. Toader e C. G. Fernlund, juízes,
advogado‑geral: J. Kokott,
secretário: V. Tourrès, administrador,
vistos os autos e após a audiência de 14 de março de 2013,
vistas as observações apresentadas:
– em representação de C. Van Buggenhout e I. Van de Mierop, na qualidade de administradores da insolvência da Grontimmo SA, pelos próprios, bem como por C. Dumont de Chassart, avocat,
– em representação do Banque Internationale à Luxembourg SA, por V. Horsmans, avocat,
– em representação do Governo belga, por M. Grégoire, M. Jacobs, L. Van den Broeck e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo alemão, por J. Kemper e T. Henze, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo francês, por G. de Bergues e B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes e S. Duarte Afonso, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin, na qualidade de agente,
ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 8 de maio de 2013,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160, p. 1).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe C. Van Buggenhout e I. Van de Mierop, na qualidade de administradores da insolvência da Grontimmo SA (a seguir «Grontimmo»), ao Banque internationale à Luxembourg SA (a seguir «BIL») a propósito de uma ação proposta contra este último para restituição, à massa insolvente administrada pelos referidos administradores, do pagamento que efetuou a favor de um credor da Grontimmo.
Quadro jurídico
Direito da União
3 Os considerandos 4, 23 e 30 do Regulamento n.° 1346/2000 têm o seguinte teor:
«(4) Para assegurar o bom funcionamento do mercado interno, há que evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou ações judiciais de um Estado‑Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável (forum shopping).
[…]
23) O presente regulamento deve estabelecer, quanto às matérias por ele abrangidas, normas uniformes sobre o conflito de leis que substituam, dentro do respetivo âmbito de aplicação, as normas internas de direito internacional privado; Salvo disposição em contrário do presente regulamento, deve aplicar‑se a lei do Estado‑Membro de abertura do processo (lex concursus) […]
[…]
(30) No entanto, em certos casos, algumas das pessoas afetadas podem não ter conhecimento da abertura do processo e agir de boa‑fé em contradição com a nova situação. A fim de proteger as pessoas que, por não terem conhecimento da abertura do processo noutro Estado, tenham cumprido uma obrigação a favor do devedor, quando o deveriam ter feito a favor do síndico no outro Estado‑Membro, deve prever‑se o caráter liberatório do cumprimento da obrigação.»
4 O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 dispõe:
«O presente regulamento é aplicável aos processos coletivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico.»
5 Nos termos do artigo 4.°, n.° 1, deste regulamento:
«Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado‑Membro em cujo território é aberto o processo […]»
6 O artigo 21.°, n.° 1, do mesmo regulamento prevê:
«O síndico pode solicitar que o conteúdo essencial da decisão de abertura do processo de insolvência, bem como, se for caso disso, da decisão que o nomeia, seja publicado em todos os demais Estados‑Membros […]»
7 O artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000 enuncia:
«1. Quem, num Estado‑Membro, cumprir uma obrigação a favor de devedor sujeito a um processo de insolvência aberto noutro Estado‑Membro, quando a deveria cumprir a favor do síndico desse processo, fica liberado caso não tenha tido conhecimento da abertura do processo.
2. Presume‑se, até prova em contrário, que quem cumpriu a referida obrigação antes da execução das medidas de publicidade previstas no artigo 21.° não tinha conhecimento da abertura do processo de insolvência; presume‑se, até prova em contrário, que quem cumpriu a referida obrigação após a execução das medidas de publicidade previstas no artigo 21.° tinha conhecimento da abertura do processo.»
Direito belga
8 No direito belga, as insolvências regem‑se pela Lei da insolvência de 8 de agosto de 1997.
9 Esta lei dispõe, no seu artigo 14.°, que qualquer decisão de declaração da insolvência é imediata e provisoriamente executória, produzindo todos os seus efeitos a partir das 00 h 00 m do dia em que seja proferida.
10 O artigo 16.° da referida lei especifica que «o insolvente, a partir da data da decisão de declaração da insolvência, está inibido de pleno direito da administração de todos os seus bens, mesmo daqueles que possa vir a herdar enquanto está em situação de insolvência».
Litígio no processo principal e questão prejudicial
11 A Grontimmo é uma sociedade de mediação imobiliária sediada em Antuérpia (Bélgica). Em 11 de maio de 2006, foi objeto de um pedido de abertura de processo de insolvência junto do tribunal de commerce de Bruxelles.
12 Em 22 e 24 de maio de 2006, respetivamente, foram emitidos dois cheques a favor da Grontimmo por duas sociedades suas devedoras, no valor total de 1 400 000 euros.
13 Em 29 de maio de 2006, a assembleia‑geral anual da Grontimmo aceitou, com efeitos imediatos, a demissão dos administradores e designou novos administradores, todos domiciliados na África do Sul. Nesse mesmo dia, a Grontimmo adquiriu uma opção de compra no valor de 1 400 000 euros, emitida pela Kostner Development Inc. (a seguir «Kostner»). Esta sociedade foi constituída em 29 de março de 2006 e está sediada no Panamá.
14 Em 31 de maio e 22 de junho de 2006, a Grontimmo abriu duas contas no Dexia Banque Internationale à Luxembourg, que passou a designar‑se BIL. Os dois cheques, no valor total de 1 400 000 euros, foram, primeiro, depositados na primeira conta e, em seguida, o referido montante foi transferido para a segunda conta.
15 Em 2 de junho de 2006, os novos administradores da Grontimmo enviaram uma ordem escrita ao Dexia Banque Internationale à Luxembourg no sentido de emitir um cheque bancário no montante de 1 400 000 euros, a favor da Kostner.
16 Em 4 de julho de 2006, a Grontimmo foi declarada insolvente pelo tribunal de commerce de Bruxelles e, consequentemente, inibida de pleno direito de dispor de todos os seus bens, com efeitos a partir da primeira hora dessa data. A sentença foi publicada no Moniteur belge em 14 de julho de 2006, mas não chegou a ser publicada no Journal officiel du Grand‑Duché de Luxembourg.
17 Em 5 de julho de 2006, em cumprimento da ordem recebida em 2 de junho de 2006, o Dexia Banque Internationale à Luxembourg emitiu e procedeu ao pagamento de um cheque no montante de 1 400 000 euros a favor da Kostner, como pagamento do preço da opção de compra que esta acordara.
18 Em 21 de setembro de 2006, os administradores da insolvência da Grontimmo notificaram a Dexia Banque Internationale à Luxembourg no sentido de proceder à restituição imediata do referido montante, alegando que o pagamento fora efetuado em violação da inibição do insolvente de dispor dos seus bens e que era, por isso, inoponível à massa insolvente, uma vez que fora efetuado após a abertura do processo de insolvência. O Dexia Banque Internationale à Luxembourg recusou‑se a restituir o referido montante, porque desconhecia a insolvência, pelo que podia invocar o artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000.
19 Uma vez que as diversas tentativas de recuperação amigável não surtiram quaisquer efeitos, os administradores da insolvência da Grontimmo instauraram o processo principal no órgão jurisdicional de reenvio em 2 de agosto de 2010.
20 O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se o BIL pode licitamente invocar o artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000, atendendo, nomeadamente, a que no caso em apreço os administradores da insolvência não procederam à publicação, no Luxemburgo, do conteúdo essencial da decisão de abertura do processo de insolvência contra esta sociedade e a que não se pode legitimamente exigir a um organismo bancário de um Estado‑Membro que verifique todos os dias se os seus clientes de outros Estados‑Membros não são alvo de um processo de insolvência.
21 Nestas condições, o tribunal de commerce de Bruxelles decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Como deve ser interpretada a expressão ‘obrigação a favor de devedor’ constante do artigo 24.° do [Regulamento n.° 1346/2000]? Deve esta expressão ser interpretada no sentido de que inclui um pagamento feito a um credor do devedor insolvente a pedido deste último, quando a parte que cumpriu esta obrigação de pagamento por conta e a favor do devedor insolvente o fez sem conhecimento da existência de um processo de insolvência contra o devedor noutro Estado‑Membro?»
Quanto à questão prejudicial
22 Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 deve ser interpretado no sentido de que pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação dessa disposição um pagamento feito a um credor do devedor insolvente, a pedido deste último.
23 A título preliminar, importa sublinhar que, ainda que o Regulamento n.° 1346/2000 contenha, designadamente, regras de conflito relativas à determinação da competência internacional e da lei aplicável (v., neste sentido, acórdão de 5 de julho de 2012, ERSTE Bank Hungary, C‑527/10, ainda não publicado na Coletânea, n.° 38 e jurisprudência referida), o artigo 24.° deste regulamento não se inclui entre estas regras de conflito, antes representa uma norma de direito material que se aplica em cada Estado‑Membro independentemente da lex concursus. A questão submetida apenas se destina a saber se um pagamento, como aquele que foi efetuado pelo Dexia Banque Internationale à Luxembourg a favor da Kostner e por ordem da Grontimmo, está abrangido pelo n.° 1 da referida disposição, segundo o qual quem, num Estado‑Membro, cumprir uma obrigação a favor de devedor sujeito a um processo de insolvência aberto noutro Estado‑Membro, quando a deveria cumprir a favor do síndico desse processo, fica liberado caso não tenha tido conhecimento da abertura do processo.
24 Para responder a esta questão, importa, como observaram todas as partes que apresentaram observações, averiguar se o conceito de cumprimento de uma obrigação «a favor de» devedor sujeito a um processo de insolvência engloba unicamente pagamentos ou outras prestações feitos ao devedor insolvente, ou também pagamentos ou outras prestações feitos a um credor daquele.
25 C. Van Buggenhout e I. Van de Mierop, o Governo francês e a Comissão Europeia consideram que o referido conceito não inclui um pagamento feito a um credor do devedor insolvente. Por sua vez, o BIL assim como os Governos belga, alemão e português sustentam que uma situação destas é abrangida por este mesmo conceito.
26 Segundo jurisprudência assente, na interpretação de uma disposição de direito da União, deve atender‑se não só aos seus termos mas também ao seu contexto e aos objetivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (v., designadamente, acórdão de 4 de maio de 2010, TNT Express Nederland, C‑533/08, Colet., p. I‑4107, n.° 44 e jurisprudência aí referida).
27 Por outro lado, a necessidade de uma interpretação uniforme dos regulamentos da União exclui que, em caso de dúvida, o texto de uma disposição seja considerado isoladamente e exige, pelo contrário, que seja interpretado e aplicado à luz das versões redigidas nas outras línguas oficiais (v., neste sentido, acórdão de 10 de setembro de 2009, Eschig, C‑199/08, Colet., p. I‑8295, n.° 54 e jurisprudência aí referida).
28 No que diz respeito, por um lado, à letra do artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, refira‑se que, de acordo com o sentido normal da expressão «a favor de», o cumprimento de uma obrigação a favor de uma pessoa sujeita a um processo de insolvência não abrange, a priori, a situação em que a obrigação é cumprida por ordem desta pessoa a favor de um dos seus credores. Com efeito, no sentido corrente, tal expressão apenas significa que a obrigação é cumprida a favor dessa pessoa, conforme resulta nomeadamente das versões desta disposição nas línguas espanhola («a favor de»), inglesa («for the benefit of»), italiana («a favore del»), neerlandesa («ten voordelen van») e portuguesa («a favor de»).
29 Ademais, o considerando 30 do Regulamento n.° 1346/2000 enuncia, em particular nas versões em línguas alemã («Zum Schutz solcher Personen, die […] eine Zahlung an den Schuldner leisten»), inglesa («In order to protect such persons who make a payment to the debtor») e sueca («För att skydda sådana personer som infriar en skuld hos gäldenären»), que a situação especificamente referida no artigo 24.°, n.° 1, deste regulamento é a de um «pagamento» ao devedor insolvente.
30 Por outro lado, o mesmo artigo 24.°, n.° 1, dispõe que a obrigação cumprida a favor de devedor insolvente devia ter sido cumprida a favor do síndico. Resulta indubitavelmente desta afirmação que este artigo se refere aos credores do devedor insolvente que passaram a credores da massa insolvente, após a abertura do processo de insolvência.
31 Estes elementos permitem concluir que, de acordo com a letra da disposição cuja interpretação é solicitada, as pessoas protegidas por esta disposição são os devedores do devedor insolvente que, quer diretamente quer por intermédio de um terceiro, cumprem de boa‑fé uma obrigação a favor deste último.
32 A este respeito, a circunstância de que, no processo principal, se trata de um banco que, por ordem e por conta do devedor insolvente, efetuou o pagamento em causa não é relevante. Com efeito, o banco, ainda que tenha cumprido uma obrigação contratual para com o devedor insolvente, não a cumpriu «a favor de» este último na aceção do artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000, dado que o referido devedor não era o beneficiário do tal pagamento.
33 No que respeita, por outro lado, ao objetivo do artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 e das normas em que aquele se insere, resulta do considerando 30 do dito regulamento que este artigo permite que se subtraiam à fiscalização do síndico determinadas situações contrárias às novas circunstâncias criadas pela abertura do processo de insolvência.
34 Em particular, o referido artigo 24.°, n.° 1, permite que a decisão de abertura do processo de insolvência não seja imediatamente reconhecida, na medida em que permite que sejam subtraídos à massa insolvente créditos pagos ao devedor insolvente pelos seus devedores de boa‑fé.
35 Ora, é importante que esta disposição não seja interpretada num sentido que permita que sejam igualmente subtraídos à massa insolvente bens que o devedor insolvente deve aos seus credores. Com efeito, se se seguir semelhante interpretação, o devedor insolvente poderá, se assegurar o cumprimento das suas obrigações para com um credor por um terceiro que não tenha conhecimento da abertura do processo de insolvência, transferir bens da massa insolvente para esse credor, minando assim um dos principais objetivos do Regulamento n.° 1346/2000, enunciado no seu considerando 4, que consiste em evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens de um Estado‑Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável.
36 Resulta de todas estas considerações relativas à letra e ao objetivo do artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000, ao contexto desta disposição e aos objetivos prosseguidos pelas normas em que a mesma se insere que uma situação como a que está em causa no processo principal, em que o devedor insolvente, por intermédio de um terceiro, cumpriu uma obrigação para com um dos seus credores, não é abrangida pelo âmbito de aplicação da referida disposição.
37 Todavia, o facto de o artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 não ser aplicável a uma situação com a que está em apreço não implica, por si só, que o banco em causa tenha a obrigação de restituir o montante controvertido à massa insolvente. A questão da eventual responsabilidade deste banco rege‑se pela lei nacional aplicável.
38 À luz das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 deve ser interpretado no sentido de que não está abrangido pelo âmbito de aplicação dessa disposição um pagamento feito, por ordem de um devedor sujeito a um processo de insolvência, a um credor seu.
Quanto às despesas
39 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:
O artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangido pelo âmbito de aplicação dessa disposição um pagamento feito, por ordem de um devedor sujeito a um processo de insolvência, a um credor seu.
Assinaturas
* Língua do processo: francês.
apresentadas em 8 de maio de 2013 (1)
Processo C‑251/12
Christian van Buggenhout e Ilse van de Mierop (administradores da insolvência da Grontimmo SA)
contra
Banque Internationale à Luxembourg
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal de commerce de Bruxelles, Bélgica)
«Cooperação judiciária em matéria civil – Regulamento (CE) n.° 1346/2000 – Processo de insolvência – Execução a favor do devedor insolvente – Pagamento efetuado por um terceiro a um credor do devedor insolvente – Desconhecimento da abertura do processo de insolvência»
I – Introdução
1. O presente processo tem por objeto, pela primeira vez, a interpretação do artigo 24.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho de 29 de maio de 2000 relativo aos processos de insolvência (2). Esta norma protege a boa‑fé de quem, por não ter conhecimento da abertura de um processo de insolvência, cumpre uma obrigação a favor do devedor insolvente, quando apenas a podia ter cumprido validamente a favor do administrador da insolvência desse processo.
2. No processo principal, os administradores da insolvência exigem a um banco o pagamento de um valor que originalmente era da devedora insolvente e que, na sequência de uma instrução recebida da devedora insolvente antes da abertura do processo de insolvência, o banco já tinha pago a um terceiro que apresentara um cheque emitido por aquela. O banco recusa‑se a pagar uma segunda vez, desta vez ao administrador da insolvência, e invoca em sua defesa o artigo 24.° do regulamento.
II – Enquadramento jurídico
A – Direito da União
3. O artigo 24.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1346/2000 dispõe o seguinte:
«Execução a favor do devedor
Quem, num Estado‑Membro, cumprir uma obrigação a favor de devedor sujeito a um processo de insolvência aberto noutro Estado‑Membro, quando a deveria cumprir a favor do síndico desse processo, fica liberado caso não tenha tido conhecimento da abertura do processo.»
III – Matéria de facto e processo principal
4. Em 11 de maio de 2006, a Association des Copropriétaires du Quartier des Arts requereu junto do Tribunal de commerce de Bruxelles a abertura do processo de insolvência da sociedade GRONTIMMO SA (3).
5. Em 22 e 24 de maio de 2006, duas sociedades emitiram cheques a favor da Grontimmo no montante global de 1 400 000 euros, como pagamento parcial das dívidas para com a Grontimmo.
6. Em 29 de maio de 2006, foram designados novos administradores da Grontimmo. No mesmo dia, a Grontimmo e a KOSTNER DEVELOPMENT INC. (4), uma sociedade de direito panamense constituída pouco antes, assinaram um acordo nos termos do qual a Grontimmo adquiria à Kostner uma opção de compra no montante de 1 400 000 euros. Esta opção de compra tinha por objeto as ações de uma sociedade de direito luxemburguês e de uma sociedade de direito das Antilhas Neerlandesas.
7. Em 2 de junho de 2006, os novos administradores da Grontimmo deram ao Dexia Internationale Luxembourg (5) instruções de que a) fosse aberta uma conta para depositar os cheques emitidos no valor total de 1 400 000 euros, e b) fosse emitido um cheque bancário DEXIA da Grontimmo à ordem da Kostner, no montante de 1 400 000 euros. Em 14 de junho de 2006, os cheques, com um valor total de 1 399 900 euros, foram depositados na conta da Grontimmo no banco.
8. Em 4 de julho de 2006, a Grontimmo foi declarada insolvente pelo Tribunal de Commerce de Bruxelles. De acordo com as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, nos termos do direito belga a devedora insolvente foi, por conseguinte, inibida de pleno direito de administrar e de dispor de todos os seus bens, operando esta inibição total a partir da primeira hora dessa data. Nos termos do direito belga, a partir de então os terceiros devedores já não podiam, em particular, cumprir uma obrigação a favor da devedora insolvente, com eficácia liberatória. Os administradores da insolvência publicaram a decisão de abertura do processo apenas na Bélgica, mas não no Luxemburgo.
9. Em 5 de julho de 2006, ou seja, no dia seguinte à declaração de insolvência, o banco emitiu, na sequência da instrução recebida da Grontimmo já em 2 de junho de 2006, um cheque relativo ao preço da opção de compra, no valor de 1 400 000 euros, à ordem da Kostner. A Kostner depositou o cheque no mesmo dia e o banco debitou o valor correspondente na conta da Grontimmo.
10. Os administradores da insolvência da Grontimmo notificaram então o banco para creditar o montado pago à Kostner na conta da Grontimmo, na medida em que o pagamento fora efetuado em violação da inibição do insolvente relativamente aos seus bens e era, por isso, inoponível à massa insolvente.
11. O banco invocou o artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000, precisando que, no ato de emissão e pagamento do cheque em 5 de julho de 2006, de acordo com as instruções recebidas nesse sentido, não tinha conhecimento da insolvência da Grontimmo, pelo que não podia proceder à restituição do referido montante à massa insolvente. Os administradores da insolvência propuseram então, no órgão jurisdicional de reenvio, uma ação para pagamento de quantia certa contra o banco.
IV – Pedido de decisão prejudicial e processo no Tribunal de Justiça
12. Por decisão de 26 de abril de 2012, o órgão jurisdicional de reenvio suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«Como deve ser interpretada a expressão ‘obrigação a favor de devedor’ constante do artigo 24.° do Regulamento CE n.° 1346/2000 de 29 de maio de 2000?
Deve esta expressão ser interpretada no sentido de que inclui um pagamento feito a um credor do devedor insolvente a pedido deste último, quando a parte que cumpriu esta obrigação de pagamento por conta e a favor do devedor insolvente o fez sem conhecimento da existência de um processo de insolvência contra o devedor noutro Estado‑Membro?»
13. No processo no Tribunal de Justiça apresentaram observações escritas e orais os administradores da insolvência da Grontimmo, a Banque International à Luxembourg, o Governo belga e a Comissão Europeia. Os Governos francês e português apresentaram observações escritas. Na audiência participou, além disso, também o Governo alemão.
V – Apreciação jurídica
14. O órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que interprete a expressão «obrigação a favor do devedor [insolvente]» constante do artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000, pretendendo saber se esta também pode abranger um pagamento que não foi feito ao devedor insolvente, mas sim, por instrução deste, a um credor do devedor insolvente, por conta e a favor do devedor insolvente.
15. Antes de me debruçar sobre a interpretação do artigo 24.°, importa enquadrar este preceito no contexto normativo geral do regulamento. O Regulamento n.° 1346/2000 prevê o reconhecimento automático de decisões relativas à abertura de processos de insolvência (6). Através deste reconhecimento automático, os efeitos conferidos ao processo pela lei do Estado de abertura estendem‑se a todos os outros Estados‑Membros (7). O regulamento contém sobretudo normas de conflito relativas à definição do direito aplicável e do tribunal competente. Neste sentido, o artigo 4.°, n.° 1, do regulamento dispõe que os efeitos do processo de insolvência são determinados de acordo com a lei do Estado‑Membro em cujo território é aberto o processo.
16. Com a abertura do processo de insolvência, em regra o devedor insolvente perde, nos termos do direito dos Estados‑Membros, o poder de administração e de disposição sobre o seu património. Deste modo, perde também a competência para receber a prestação: um devedor do devedor insolvente (terceiro devedor) já não pode cumprir a sua obrigação a favor do devedor insolvente, com eficácia liberatória. Se o terceiro devedor cumprir, apesar disso, a sua obrigação a favor do devedor insolvente, esta não tem caráter liberatório. O administrador da insolvência, agora competente para receber a prestação, não é obrigado a aceitar que lhe seja oposto o cumprimento da obrigação. Por conseguinte, neste caso o terceiro devedor está, por princípio, obrigado a voltar a cumprir a obrigação, desta vez a favor do administrador da insolvência.
17. Na medida em que o regulamento prescreve o reconhecimento automático dos efeitos da abertura do processo de insolvência em todos os Estados‑Membros, os terceiros devedores correm, por conseguinte, o risco de cumprir as obrigações a favor das entidades erradas por desconhecerem a abertura do processo noutro Estado‑Membro. Este risco é particularmente elevado no caso de aberturas de processos de insolvência noutros Estados‑Membros, na medida em dificilmente é possível ao terceiro devedor obter uma visão geral diariamente atualizada sobre todas as aberturas de processos realizadas em todos os outros Estados‑Membros. O terceiro devedor não pode, em particular, limitar‑se simplesmente ao conhecimento das publicações de aberturas de processos de insolvência no seu Estado‑Membro, na medida em que o regulamento não prevê qualquer obrigação de publicar as decisões sobre processos de insolvência em todos os Estados‑Membros. Assim, também no caso vertente a abertura do processo da insolvência da Grontimmo não foi objeto de publicação no Luxemburgo.
18. Neste contexto, o artigo 24.° visa a proteção dos terceiros devedores que cumprem uma obrigação de boa‑fé em contradição com o novo regime jurídico, após a abertura do processo de insolvência (8). A fim de proteger as pessoas que, por não terem conhecimento da abertura do processo noutro Estado, tenham cumprido uma obrigação a favor do devedor, quando o deveriam ter feito a favor do administrador da insolvência no outro Estado‑Membro, o regulamento prevê o caráter liberatório do cumprimento da obrigação (9).
19. No meu entender, o âmbito de aplicação do artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000 não abrange apenas o cumprimento de obrigações a devedores insolventes consubstanciadas num pagamento direto ou na transmissão direta de um outro bem patrimonial a estes, mas também em transmissões a terceiros quando o terceiro devedor as realiza por instrução do devedor insolvente e por conta deste. Também este tipo de contribuições deve ser qualificado como «obrigação a favor de devedor» na aceção do artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000, tal como resulta da interpretação da letra, bem como do sentido e da finalidade do artigo 24.° do regulamento.
A – Letra
20. Os demandantes no processo principal e os Governos belga, alemão e português apresentam argumentos a favor da interpretação do conceito de «obrigação» no sentido de que também abrange um pagamento por parte de um banco (terceiro devedor) a um credor do devedor insolvente, realizada por instrução deste (10) ou com o consentimento deste (11).
21. A letra do artigo 24.° do regulamento não se opõe a um entendimento deste tipo. O que vale ainda mais para as versões inglesa, francesa, espanhola e italiana do regulamento, que se referem à «execução a favor do devedor» (12). Isto porque o cumprimento de uma obrigação contratual em benefício do devedor insolvente não se realiza apenas quando o devedor insolvente, através do cumprimento dessa obrigação, obtém diretamente um montante pecuniário ou um outro bem patrimonial e, por conseguinte, recorrendo a uma imagem, graças ao cumprimento da obrigação fica imediatamente com algo nas mãos.
22. De acordo com o sentido mais geral, uma «execução em benefício do devedor» também se verifica sem mais quando o terceiro devedor realiza uma contribuição em favor de um terceiro, com a qual cumpre, precisamente, uma obrigação que este, o terceiro devedor, tem para com o devedor insolvente. Por exemplo, se a obrigação assumida perante o devedor insolvente consistir na entrega de um bem a um terceiro, o cumprimento desta obrigação a favor do devedor consubstancia‑se precisamente na entrega do bem ao terceiro.
23. Este tipo de contribuição a um terceiro pode também ser considerado uma execução a favor do devedor insolvente sob outro aspeto, pois desde que o devedor insolvente esteja vinculado ao cumprimento de uma obrigação correspondente a favor do terceiro, por exemplo ao pagamento do preço devido por uma aquisição, o devedor insolvente é liberado da sua obrigação através do cumprimento da obrigação a um terceiro. Por conseguinte, a contribuição do terceiro devedor em relação ao terceiro também é realizada neste âmbito «a favor» do devedor insolvente. A mesma situação verifica‑se no presente caso: o pagamento à Kostner é realizado a favor da Grontimmo, na medida em que esta é assim liberada da dívida correspondente ao preço da aquisição, que tinha para com a Kostner.
24. Na versão alemã do regulamento é utilizada, no artigo 24.º, a expressão «wer an einen Schuldner leistet» [«quem cumprir uma obrigação perante um devedor»]. Em francês, por exemplo, esta expressão poderá ser literalmente traduzida por «celui qui exécute une obligation à l’égard do débiteur». Consequentemente, a versão alemã pode ser mais restritiva do que algumas das outras versões linguísticas, que utilizam a expressão «a favor do devedor». Contudo, também a expressão alemã «wer an einen Schuldner leistet» admite, sem mais, a interpretação proposta para a norma. Segundo o entendimento linguístico comummente aceite, uma contribuição constitui o «cumprimento de uma obrigação» quando é realizada no âmbito de uma determinada relação obrigacional. Por conseguinte, em termos linguísticos também se verifica o «cumprimento de uma obrigação perante o devedor» quando um terceiro devedor, por forma de uma relação obrigacional existente entre ele e o devedor insolvente, presta uma contribuição a um terceiro. Esta relação obrigacional converte a contribuição ao terceiro no cumprimento de uma obrigação ao devedor insolvente.
25. Este entendimento do artigo 24.° do regulamento também é confirmado pelo seu trigésimo considerando, do qual resulta que o conceito de «cumprimento de uma obrigação» constante do artigo 24.° não abrange apenas pagamentos, mas também todas as outros formas de cumprimento da obrigação perante o devedor insolvente (13). No entanto, ao contrário de um pagamento ao devedor insolvente, o cumprimento de uma obrigação perante este não necessita de estar obrigatoriamente ligado a uma contribuição direta.
26. A questão de saber se uma relação obrigacional deste tipo entre o terceiro devedor e o devedor insolvente era fundamentada orienta‑se, tal como o Governo alemão expôs corretamente, pelo direito nacional. No presente caso não se vislumbra, no entanto, qualquer elemento que permita confirmar a existência de uma relação obrigacional deste tipo. Através da contribuição ao terceiro (Kostner), o terceiro devedor (o banco) cumpre a obrigação perante o devedor insolvente (Grontimmo), respeitando os compromissos do contrato existente entre ele e o devedor insolvente. Isto porque o banco estava vinculado contratualmente, para com a Grontimmo, a transferir, por instrução da Grontimmo, determinados valores para esta empresa ou para terceiros, ou então – tal como sucedeu no presente caso – a emitir e pagar cheques por débito na conta bancária. No presente caso, o banco pretendeu cumprir a obrigação assumida em relação à Grontimmo através da emissão e do pagamento de cheques.
27. Em minha opinião, uma situação como a que está em causa no presente processo é, por conseguinte, abrangida sem mais pela letra do artigo 24.° do regulamento, sem que seja necessário recorrer a uma interpretação extensiva desta disposição. A emissão e o pagamento do cheque a favor da Kostner, que estão na origem da operação de débito na conta bancária, constituem o cumprimento de uma obrigação do banco a favor do seu cliente, o devedor insolvente.
B – Interpretação teleológica
28. Tal como já foi referido, o regulamento estabelece o reconhecimento automático de um processo de insolvência aberto noutro Estado‑Membro sem prever, em simultâneo, a publicação obrigatória, em todos os Estados‑Membros, da abertura do processo. Neste contexto, o artigo 24.° visa a proteção dos terceiros que, agindo de boa‑fé mas em contradição com o novo regime jurídico, ainda cumprem uma obrigação a favor do devedor insolvente após a abertura do processo de insolvência, que já não tem competência para receber a prestação. Pretende‑se assim evitar que estes terceiros que agem de boa‑fé sejam obrigados a cumprir duplamente a sua obrigação – desta vez ao administrador da insolvência.
29. A necessidade de proteção do terceiro que age de boa‑fé, e que cumpre a obrigação perante o devedor insolvente mediante uma contribuição a um terceiro, por instrução daquele, não se distingue, neste âmbito, da necessidade de proteção do terceiro que cumpre a sua obrigação perante o devedor insolvente por via de uma contribuição direta. Isto porque, em ambos os casos, o terceiro devedor apenas cumpre a sua obrigação contratual perante o devedor insolvente porque desconhece a insolvência deste.
30. Isto é igualmente confirmado por uma análise dos factos do processo principal. Quando um banco desconhece a abertura, noutro Estado‑Membro, do processo de insolvência sobre o património do seu cliente, não se vislumbra qualquer razão para colocar o banco, quando este, por força de um compromisso de emissão e pagamento de um cheque assumido validamente antes da abertura da insolvência, e sem ter conhecimento da insolvência, paga um valor do devedor insolvente a um terceiro, numa posição mais desvantajosa do que a que teria se fizesse o pagamento direto do valor ao devedor insolvente.
31. Neste âmbito, o órgão jurisdicional de reenvio refere, com razão, que não se pode esperar que um banco que analise diariamente os avisos sobre insolvências publicados em outros Estados‑Membros antes de proceder às ordens de pagamento dadas por clientes estrangeiros ou então que peça a emissão de uma confirmação sobre a inexistência de um processo de insolvência, a qual, para além disso, apenas teria validade no dia da sua emissão. Tal como alguns dos Estados‑Membros alegaram com razão, uma diferente interpretação afetaria de forma considerável os pagamentos transfronteiriços.
32. O facto de o caso concreto poder representar um negócio através do qual o devedor insolvente possivelmente diminuiu de forma danosa ou fraudulenta a massa insolvente não justifica uma interpretação restritiva do artigo 24.° do regulamento que prejudique o banco, na medida em que é precisamente a sua boa‑fé que esta disposição pretende proteger. Caso tivesse tido conhecimento de uma disposição fraudulenta por parte da devedora insolvente, o banco não estaria, desde logo, a agir de boa‑fé e não poderia extrair quaisquer direitos do artigo 24.° do regulamento.
33. Também o argumento da Comissão, de acordo com o qual o entendimento aqui defendido favoreceria uma diminuição da massa insolvente, não convence. Neste âmbito, é indiferente que o devedor insolvente diminua a massa insolvente mandando pagar um montante a si próprio e depois entregando este montante em espécie a um terceiro que não pode ser demandado, ou que recorra ao banco para o pagamento. Em ambos os casos, violará o direito nacional, devendo, se for caso disso, o comportamento do devedor insolvente ser objeto de procedimento penal ou então punido por outra via. Não se verifica, no entanto, qualquer razão para o banco apenas ser responsabilizado no segundo caso.
34. Caso a Comissão considere que compete ao direito nacional determinar se este contém uma disposição relativa à boa‑fé, nos termos da qual, numa situação como a presente, um banco pode ser isento de uma obrigação de pagamento, tal contradiz a ideia harmonizadora do artigo 24.° do Regulamento n.° 1346/2000. É que sucede precisamente que, ao contrário da maioria das outras disposições do regulamento, o artigo 24.° do regulamento não remete para o direito nacional, contendo pelo contrário um regime substantivo autónomo que deve também ser aplicado uniformemente em todos os Estados‑Membros. Por conseguinte, impõe‑se também a interpretação autónoma desta norma à luz do direito da União.
35. Por fim, a Comissão considera ainda que, como disposição derrogatória do princípio do reconhecimento automático da decisão de abertura, o artigo 24.° deve, desde logo, ser objeto de interpretação estrita. No entanto, este argumento não procede no presente caso, na medida em que a interpretação defendida está diretamente abrangida pela letra da disposição e não representa – tal como a Comissão considera – uma interpretação extensiva inadmissível.
VI – Conclusão
36. Proponho, por conseguinte, que seja dada a seguinte resposta ao pedido de decisão prejudicial:
Um pagamento a um credor do devedor insolvente constitui uma obrigação «a favor do devedor», na aceção do artigo 24.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, quando este pagamento é realizado para cumprir uma obrigação assumida perante o devedor insolvente.
1 – Língua original: alemão.
2 – JO L 160, p. 1.
3 – A seguir «Grontimmo».
4 – A seguir «Kostner».
5 – Atualmente Banque Internationale à Luxemburg, a seguir «o banco demandado» ou «o banco».
6 – V. o vigésimo segundo considerando do Regulamento n.° 1346/2000.
7 – V. o vigésimo segundo considerando do Regulamento n.° 1346/2000.
8 – V. o trigésimo considerando do Regulamento.
9 – V. igualmente o trigésimo considerando do Regulamento.
10 – Os Governos belga e português, bem como os demandantes no processo principal.
11 – O Governo alemão.
12 – «Exécution au profit du débiteur», «where an obligation has been honoured in a Member State for the benefit of a debtor», «ejecución a favor del deudor» e «prestazioni a favore del debitore».
13 – Virgós, M., e Schmit, E., Virgós, M., e Schmit, E., Erläuternder Bericht zu dem EU-Übereinkommen über Insolvenzverfahren [Relatório explicativo sobre a Convenção da União Europeia sobre o processo de insolvência], versão alemã após revisão pelo grupo de peritos jurídicos e linguísticos, Conselho da União Europeia, Doc. 6500/1/96 REV 1, n.º 187.