Processo C‑133/08
Intercontainer Interfrigo SC (ICF)
contra
Balkenende Oosthuizen BV,
MIC Operations BV
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]
«Convenção de Roma sobre a lei aplicável às obrigações contratuais – Lei aplicável na falta de escolha – Contrato de fretamento – Critérios de conexão – Separabilidade»
Sumário do acórdão
1. Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais – Lei aplicável na falta de escolha – Critérios de conexão
(Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980, artigo 4.°, n.° 4)
2. Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais – Fraccionamento do contrato para determinar a lei aplicável
(Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980, artigo 4.°,n.os 1 e 4)
3. Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais – Lei aplicável na falta de escolha – Critérios de conexão – Obrigação de determinar a lei aplicável em função das presunções previstas no artigo 4.°, n.os 2 a 4
(Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980, artigo 4.°,n.os 2 a 5)
1. O artigo 4.°, n.° 4, último período, da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma, em 19 de Junho de 1980, deve ser interpretado no sentido de que o critério de conexão previsto no referido artigo 4.°, n.° 4, segundo período, só se aplica a um contrato de fretamento, que não seja relativo a uma única viagem, se não tiver por objecto principal a simples disponibilização de um meio de transporte, mas o transporte das mercadorias propriamente dito.
Para definir este objecto, cumpre ter em conta a finalidade da relação contratual e, consequentemente, o conjunto das obrigações da parte que fornece a prestação característica. Ora, se, em princípio, num contrato de fretamento, o fretador, se obriga normalmente a pôr à disposição do afretador um meio de transporte, não se exclui a possibilidade de as obrigações do fretador incidirem não só na simples colocação à disposição de um meio de transporte mas também no transporte das mercadorias propriamente dito. Nesse caso, o contrato em questão é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção desde que o seu objecto principal consista no transporte de mercadorias.
(cf. n.os 33-35, 37, disp. 1)
2. A fim de assegurar um nível elevado de segurança jurídica nas relações contratuais, como exigem os objectivos da Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, o sistema que determina a lei aplicável deve ser claro e previsível com um certo grau de certeza.
Para isso, o artigo 4.°, n.° 1, segundo período, desta Convenção deve ser interpretado no sentido de que uma parte do contrato só pode ser regulada por uma lei diferente da que é aplicada ao resto do contrato quando objecto da referida parte for autónomo. Por conseguinte, quando o critério de conexão aplicado a um contrato de fretamento for o do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção, esse critério deve ser aplicado a todo o contrato, a menos que a parte do contrato relativa ao transporte não seja autónoma do resto do contrato.
(cf. n.os 44-49, disp. 2)
3. O artigo 4.°, n.° 5, da Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais deve ser interpretado no sentido de que, quando resultar claramente do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do país determinado com base num dos critérios previstos no mencionado artigo 4.°, n.os 2 a 4, cabe ao juiz afastar esses critérios e aplicar a lei do país com o qual o referido contrato tem uma conexão mais estreita. Esse poder do juiz subsiste apesar do seu dever de proceder sempre à determinação da lei aplicável com base nas presunções, previstas no artigo 4.°, n.os 2 a 4, da convenção que satisfazem a exigência geral de previsibilidade da lei e, portanto, de segurança jurídica nas relações contratuais.
(cf. n.os 62-64, disp. 3)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)
«Convenção de Roma sobre a lei aplicável às obrigações contratuais – Lei aplicável na falta de escolha – Contrato de fretamento – Critérios de conexão – Separabilidade»
No processo C‑133/08,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do Primeiro Protocolo de 19 de Dezembro de 1988 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos), por decisão de 28 de Março de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 2 de Abril de 2008, no processo
Intercontainer Interfrigo SC (ICF)
contra
Balkenende Oosthuizen BV,
MIC Operations BV,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),
composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Lenaerts, A. Ó Caoimh e J.‑C. Bonichot, presidentes de secção, P. Kūris, E. Juhász, G. Arestis, L. Bay Larsen, P. Lindh e C. Toader (relatora), juízes,
advogado‑geral: Y. Bot,
secretário: R. Grass,
vistos os autos,
vistas as observações apresentadas:
– em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e Y. de Vries, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,
– em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por V. Joris e R. Troosters, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 19 de Maio de 2009,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma, em 19 de Junho de 1980 (JO 1980, L 266, p.1; EE 01 F3 p. 36; a seguir «Convenção»). Este pedido diz respeito ao seu artigo 4.°, relativo à lei aplicável na falta de escolha pelas partes.
2 O referido pedido foi apresentado no âmbito de um litígio iniciado pela Intercontainer Interfrigo SC (a seguir «ICF»), sociedade estabelecida na Bélgica, contra a Balkenende Oosthuizen BV (a seguir «Balkenende») e a MIC Operations BV (a seguir «MIC»), duas sociedades estabelecidas nos Países Baixos, com vista à condenação destas últimas no pagamento de facturas não pagas, emitidas com base num contrato de fretamento celebrado entre as partes.
Quadro jurídico
3 O artigo 4.° da Convenção, sob a epígrafe «Lei aplicável na falta de escolha», estipula:
«1. Na medida em que a lei aplicável ao contrato não tenha sido escolhida nos termos do artigo 3.°, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita. Todavia, se uma parte do contrato for separável do resto do contrato e apresentar uma conexão mais estreita com um outro país, a essa parte poderá aplicar‑se, a título excepcional, a lei desse outro país.
2. Sem prejuízo do disposto no n.° 5, presume‑se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde a parte que está obrigada a fornecer a prestação característica do contrato tem, no momento da celebração do contrato, a sua residência habitual ou, se se tratar de uma sociedade, associação ou pessoa colectiva, a sua administração central. Todavia, se o contrato for celebrado no exercício da actividade económica ou profissional dessa parte, o país a considerar será aquele em que se situa o seu estabelecimento principal ou, se, nos termos do contrato, a prestação deve ser fornecida por estabelecimento diverso do estabelecimento principal, o da situação desse estabelecimento.
3. Quando o contrato tiver por objecto um direito real sobre bem imóvel, ou um direito de uso de um bem imóvel, presume‑se, em derrogação do disposto no n.° 2, que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde o imóvel se situa.
4. A presunção do n.° 2 não é admitida quanto ao contrato de transporte de mercadorias. Presume‑se que este contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país em que, no momento da celebração do contrato, o transportador tem o seu estabelecimento principal, se o referido país coincidir com aquele em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou do estabelecimento principal do expedidor. Para efeitos de aplicação do presente [número], são considerados como contratos de transporte de mercadorias os contratos de fretamento relativos a uma única viagem ou outros contratos que tenham por objecto principal o transporte de mercadorias.
5. O disposto no n.° 2 não se aplica se a prestação característica não for determinável. As presunções dos n.os 2, 3 e 4 não serão admitidas sempre que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com outro país.»
4 O artigo 10.° da Convenção, intitulado «Âmbito de aplicação da lei do contrato», dispõe:
«1. A lei aplicável ao contrato por força dos artigos 3.° a 6.° e do artigo 12.° da presente Convenção regula, nomeadamente:
[…]d) As diversas causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade fundadas no decurso de um prazo;
[…]»5 O Primeiro Protocolo de 19 de Dezembro de 1988 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma, em 19 de Junho de 1980 (JO 1989, L 48, p. 1, a seguir «Primeiro Protocolo»), dispõe no seu artigo 2.°:
«Qualquer órgão jurisdicional abaixo referido pode solicitar ao Tribunal de Justiça que decida a título prejudicial sobre uma questão suscitada em processo pendente e que incida sobre a interpretação das disposições contidas nos instrumentos referidos no artigo 1.°, sempre que esse órgão jurisdicional considere que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa:
a) […]
– Nos Países Baixos:
de Hoge Raad,
[…]»Litígio no processo principal e questões prejudiciais
6 Em Agosto de 1998, a ICF celebrou um contrato de fretamento com a Balkenende e a MIC no âmbito de um projecto de ligação ferroviária para transporte de mercadorias entre Amesterdão (Países Baixos) e Frankfurt am Main (Alemanha). Esse contrato estipulava, designadamente, que a ICF devia colocar vagões à disposição da MIC e assegurar o respectivo transporte por caminho‑de‑ferro. A MIC, que tinha dado em locação a terceiros a capacidade de carga de que dispunha, era responsável por toda a parte operacional e pelo transporte das mercadorias em causa.
7 As partes não celebraram contrato escrito, mas, durante um breve período, deram execução ao acordado. Todavia, a ICF enviou à MIC uma minuta do contrato, que continha uma cláusula designando o direito belga como lei aplicável. Essa minuta nunca foi assinada por nenhuma das partes.
8 Em 27 de Novembro e 22 de Dezembro de 1998, a ICF enviou à MIC facturas nos montantes de 107 512,50 euros e de 67 100 euros. O primeiro destes montantes não foi pago pela MIC, tendo o segundo sido liquidado.
9 Em 7 de Setembro de 2001, a ICF interpelou pela primeira vez a Balkenende e a MIC para pagamento da factura de 27 de Novembro de 1998.
10 Por acção intentada em 24 de Dezembro de 2002 no Rechtbank te Haarlem (Tribunal de Haarlem) (Países Baixos), a ICF pediu a condenação da Balkenende e da MIC no pagamento do montante da referida factura, e do correspondente imposto sobre o valor acrescentado, o que perfazia um montante de 119 255 euros.
11 Como resulta da decisão de reenvio, a Balkenende e a MIC invocaram a prescrição do crédito em causa no processo principal, alegando que, por força da lei aplicável ao contrato que as ligava à ICF, no caso vertente, o direito neerlandês, esse crédito tinha prescrito.
12 Pelo contrário, segundo a ICF, o crédito não tinha prescrito, porque, por força do direito belga, que era a lei aplicável ao contrato, a prescrição invocada ainda não se tinha verificado. A este propósito, a ICF refere que, não sendo o contrato em causa no processo principal um contrato de transporte, a lei aplicável não deve ser determinada com base no artigo 4.°, n.° 4, da Convenção, mas com base no n.° 2 desse mesmo artigo 4.°, segundo o qual a lei aplicável a este contrato é a do país em que se situa o estabelecimento principal da ICF.
13 O Rechtbank te Haarlem julgou procedente a excepção da prescrição invocada pela Balkenende e pela MIC. De acordo com o direito neerlandês, este órgão jurisdicional considerou, assim, que o direito ao pagamento da factura reclamado pela ICF estava prescrito e julgou o pedido inadmissível. O Gerechtshof te Amsterdam (Tribunal de Recurso de Amesterdão) (Países Baixos) confirmou esta decisão.
14 Os órgãos jurisdicionais que conheceram do mérito da causa qualificaram o contrato em questão de contrato de transporte de mercadorias e consideraram que, embora a ICF não tenha a qualidade de transportador, o objecto principal do contrato é o transporte de mercadorias.
15 Contudo, estes órgãos jurisdicionais excluíram a aplicação do critério de conexão previsto no artigo 4.°, n.° 4, da Convenção e consideraram que o contrato em causa no processo principal está mais estreitamente ligado ao Reino dos Países Baixos do que ao Reino da Bélgica, baseando‑se em diversas circunstâncias concretas, como a sede dos co‑contratantes, que se situa nos Países Baixos, e o facto de o trajecto dos vagões ser feito entre Amesterdão e Frankfurt am Main, cidades onde as mercadorias são, respectivamente, carregadas e depois descarregadas.
16 Resulta da decisão de reenvio que, a este respeito, os referidos órgãos jurisdicionais afirmaram que, se o contrato for principalmente relativo ao transporte de mercadorias, o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção não é aplicável, uma vez que, no caso em apreço, não existe uma ligação pertinente na acepção dessa disposição. Consequentemente, o referido contrato deve reger‑se, segundo o princípio enunciado no artigo 4.°, n.° 1, da Convenção, pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita, no caso vertente, o Reino dos Países Baixos.
17 Segundo os mesmos órgãos jurisdicionais, se, como a ICF defende, o contrato em causa no processo principal não for qualificado de contrato de transporte, o artigo 4.°, n.° 2, da Convenção também não é aplicável, dado que decorre das circunstâncias do caso em apreço que esse contrato apresenta uma conexão mais estreita com o Reino dos Países Baixos, de forma que deve ser aplicada a disposição derrogatória do artigo 4.°, n.° 5, segundo período, da Convenção.
18 No seu recurso de cassação, a ICF invocou não apenas um erro de direito na qualificação do referido contrato de contrato de transporte mas também a possibilidade de o juiz derrogar a regra geral estabelecida no artigo 4.°, n.° 2, da Convenção para aplicar o seu artigo 4.°, n.° 5. Segundo a recorrente no processo principal, só se pode recorrer a esta faculdade quando resulta do conjunto das circunstâncias que o local em que está estabelecida a parte que deve fornecer a prestação característica não tem valor de conexão efectivo, o que não se verifica no caso em apreço.
19 Tendo em conta estas divergências sobre a interpretação do artigo 4.° da Convenção, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O artigo 4.°, n.° 4, da Convenção […] deve ser interpretado no sentido de que esta disposição apenas respeita ao fretamento por viagem e de que outras formas de fretamento ficam fora do seu âmbito de aplicação?
2) Se a resposta à [primeira questão] for afirmativa, o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção […] deve ser interpretado no sentido de que, na medida em que outros tipos de fretamento também tiverem por objecto o transporte de mercadorias, os respectivos contratos ficam, no tocante a esse transporte, abrangidos pelo âmbito de aplicação dessa disposição e, quanto ao resto, o direito aplicável é determinado pelo artigo 4.°, n.° 2, da Convenção […]?
3) Se a resposta à [segunda questão] for afirmativa, qual dos dois sistemas jurídicos indicados deve servir de base à apreciação da alegação de prescrição dos pedidos baseados no contrato?
4) Se o ponto central do contrato for o transporte de mercadorias, a distinção referida na [segunda questão] deve ser afastada e o direito aplicável a todos os aspectos do contrato deve ser determinado com base no artigo 4.°, n.° 2, da Convenção […]?
5) A excepção prevista no segundo período do n.° 5 do artigo 4.° da Convenção […] deve ser interpretada no sentido de que as presunções dos n.os 2 [a] 4 do artigo 4.° da mesma Convenção só devem ser afastadas quando resultar do conjunto das circunstâncias que os critérios de conexão aí previstos não têm valor de conexão efectivo, ou também devem ser afastadas quando dessas circunstâncias resultar que há uma conexão predominante com um outro país?»
Quanto às questões prejudiciais
Observações preliminares
Quanto à competência do Tribunal de Justiça
20 Por força do Primeiro Protocolo, que entrou em vigor em 1 de Agosto de 2004, o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre pedidos de decisão prejudicial relativos à Convenção.
21 Além disso, por força do artigo 2.°, alínea a), do Primeiro Protocolo, o Hoge Raad der Nederlanden pode pedir ao Tribunal de Justiça que decida a título prejudicial sobre uma questão suscitada em processo pendente nesse órgão jurisdicional e que incida sobre a interpretação das disposições da Convenção.
Quanto ao sistema instituído pela Convenção
22 Como afirmou o advogado‑geral nos n.os 33 a 35 das suas conclusões, decorre do preâmbulo da Convenção que esta foi celebrada com o objectivo de prosseguir, no domínio do direito internacional privado, a obra de unificação jurídica iniciada pela adopção da Convenção de Bruxelas de 1968 relativa à competência judiciária e à execução das decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186).
23 Decorre também do referido preâmbulo que a Convenção tem o objectivo de instituir regras uniformes relativamente à lei aplicável às obrigações contratuais, independentemente do local onde a decisão for proferida. Com efeito, como resulta do Relatório respeitante à Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, de Mario Giuliano, professor da Universidade de Milão, e de Paul Lagarde, professor da Universidade de Paris I (JO 1980, C 282, p. 1, a seguir «relatório Giuliano e Lagarde»), a Convenção nasceu da preocupação em suprimir os inconvenientes que resultam da diversidade das normas de conflito no domínio dos contratos. A Convenção visa elevar o nível da segurança jurídica reforçando a confiança na estabilidade das relações jurídicas e a protecção dos direitos adquiridos em todo o direito privado.
24 No que se refere aos critérios estabelecidos na Convenção para determinar a lei aplicável, importa observar que as regras uniformes estabelecidas no título II da Convenção consagram o princípio do primado da vontade das partes, às quais é reconhecida, no artigo 3.° da Convenção, liberdade para escolherem a lei aplicável.
25 Não tendo as partes escolhido a lei aplicável ao contrato, o artigo 4.° da Convenção prevê os critérios de conexão com base nos quais o juiz deve determinar essa lei. Esses critérios aplicam‑se a qualquer tipo de contrato.
26 O artigo 4.° da Convenção baseia‑se no princípio geral, consagrado no seu n.° 1, de que, para determinar a conexão de um contrato com um direito nacional, há que estabelecer o país com o qual o contrato apresenta «a conexão mais estreita».
27 Como resulta do relatório Giuliano e Lagarde, a flexibilidade deste princípio geral é restringida pelas «presunções» previstas no artigo 4.°, n.os 2 a 4, da Convenção. Em especial, este artigo 4.°, n.° 2, enuncia uma presunção de carácter geral, que consiste em adoptar como critério de conexão o local da residência da parte que fornece a prestação característica do contrato, ao passo que o referido artigo 4.°, n.os 3 e 4, fixa critérios de conexão especiais no que se refere, respectivamente, aos contratos que têm por objecto um direito real imobiliário e aos contratos de transporte. O artigo 4.°, n.° 5, da Convenção contém uma cláusula que permite ilidir as referidas presunções.
Quanto à primeira questão e à primeira parte da segunda questão, relativas à aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção aos contratos de fretamento
Observações submetidas ao Tribunal de Justiça
28 Na opinião do Governo neerlandês, o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção visa não só os contratos de fretamento relativos a uma única viagem mas também qualquer outro contrato que tenha por objecto principal o transporte de mercadorias. Com efeito, resulta do relatório Giuliano e Lagarde que esta disposição se destina a tornar claro que os contratos de fretamento devem ser considerados contratos de transporte de mercadorias na medida em seja esse o seu objecto. Assim, entram nesta categoria os contratos de fretamento temporário, em que um meio de transporte completo com a sua tripulação é posto à disposição do afretador por um determinado período com vista à realização de um transporte.
29 Em contrapartida, o Governo checo sugere que seja feita uma interpretação teleológica, no sentido de que o último período do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção se destina a estender o âmbito de aplicação deste artigo 4.°, n.° 4, a determinadas categorias de contratos relacionados com o transporte de mercadorias, apesar de esses contratos não poderem ser qualificados de contratos de transporte. Com efeito, para que um contrato de fretamento seja abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 4, último período, é necessário que o seu objecto principal seja o transporte de mercadorias. Daqui resulta que a expressão «objecto principal» deve ser entendida, não como o objecto directo do contrato para o qual a relação contratual em causa foi concluída, mas como o objecto que, para ser alcançado, necessita de ser auxiliado pela referida relação.
30 A Comissão das Comunidades Europeias afirma que o artigo 4.°, n.° 4, último período, da Convenção tem um «âmbito limitativo». O critério da conexão enunciado nesse período só abrange determinadas categorias de contratos de fretamento, a saber, aqueles em que um meio de transporte é posto à disposição de um transportador uma única vez e os celebrados entre um transportador e um expedidor que digam exclusivamente respeito ao transporte de mercadorias. Apesar de ser inegável que o contrato em causa no processo principal, ao prever que sejam postos à disposição meios de transporte e o seu encaminhamento por caminho‑de‑ferro, implica necessariamente o transporte de mercadorias, esses elementos não são, contudo, suficientes para o qualificar de contrato de transporte de mercadorias com vista à aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção. As relações contratuais com os diferentes expedidores e as obrigações relativas ao transporte efectivo das mercadorias, incluindo a carga e a descarga, parecem ser estabelecidas entre a MIC e «terceiros», a quem a MIC deu em locação a capacidade de carga nos vagões fretados.
Resposta do Tribunal de Justiça
31 Com a primeira questão e com a primeira parte da segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça, no essencial, se o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção se aplica a contratos de fretamento que não sejam relativos a uma única viagem e pede‑lhe que indique os elementos que permitem qualificar um contrato de fretamento de contrato de transporte com vista à aplicação desta disposição ao contrato em causa no processo principal.
32 A este propósito, há que recordar a título preliminar que, por força do artigo 4.°, n.° 4, segundo período, da Convenção, o contrato de transporte de mercadorias se rege pela lei do país em que, no momento da celebração do contrato, o transportador tiver o seu estabelecimento principal, se o referido país coincidir com aquele em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou o estabelecimento principal do expedidor. O artigo 4.°, n.° 4, último período, da Convenção dispõe que, para efeitos de aplicação desse número, «são considerados como contratos de transporte de mercadorias os contratos de fretamento relativos a uma única viagem ou outros contratos que tenham por objecto principal o transporte de mercadorias».
33 Resulta do teor desta disposição que a Convenção equipara aos contratos de transporte não só os contratos de fretamento relativos a uma única viagem mas também outros contratos desde que tenham por objecto principal o transporte de mercadorias.
34 Consequentemente, uma das finalidades da referida disposição é estender o âmbito de aplicação da regra de direito internacional privado, prevista no artigo 4.°, n.° 4, segundo período, da Convenção, a contratos que, mesmo que sejam qualificados à luz do direito nacional de contratos de fretamento, tenham por objecto principal o transporte de mercadorias. Para definir este objecto, cumpre ter em conta a finalidade da relação contratual e, consequentemente, o conjunto das obrigações da parte que fornece a prestação característica.
35 Ora, num contrato de fretamento, o fretador, que fornece essa prestação, obriga‑se normalmente a pôr à disposição do afretador um meio de transporte. Contudo, não se exclui a possibilidade de as obrigações do fretador incidirem não só na simples colocação à disposição de um meio de transporte mas também no transporte das mercadorias propriamente dito. Nesse caso, o contrato em questão é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção desde que o seu objecto principal consista no transporte de mercadorias.
36 Importa, contudo, salientar que a presunção estabelecida no artigo 4.°, n.° 4, segundo período, da Convenção só se aplica quando o fretador – admitindo que seja considerado o transportador –, no momento da celebração do contrato, tiver o seu estabelecimento principal no país em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou o estabelecimento principal do expedidor.
37 Em face do exposto, há que responder à primeira questão e à primeira parte da segunda questão que o artigo 4.°, n.° 4, último período, da Convenção deve ser interpretado no sentido de que o critério de conexão previsto no referido artigo 4.°, n.° 4, segundo período, só se aplica a um contrato de fretamento, que não seja relativo a uma única viagem, se não tiver por objecto principal a simples disponibilização de um meio de transporte, mas o transporte das mercadorias propriamente dito.
Quanto à segunda parte da segunda questão e à terceira e quarta questões, relativas à possibilidade de o juiz dividir o contrato em várias partes para determinar a lei aplicável
Observações submetidas ao Tribunal de Justiça
38 O Governo neerlandês considera que, ao abrigo do artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção, o fraccionamento do contrato só é possível a título «excepcional» quando uma parte do contrato for separável do resto e apresentar uma conexão mais estreita com um país diferente daquele com que as outras partes do contrato têm conexão e quando essa separação não for susceptível de perturbar as relações entre as disposições aplicáveis. Segundo o referido governo, no caso em apreço, se o contrato em causa no processo principal não disser principalmente respeito ao transporte de mercadorias, está totalmente fora do âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção. Pelo contrário, se este contrato disser principalmente respeito ao transporte de mercadorias, entra por completo no âmbito de aplicação deste artigo 4.°, n.° 4. Consequentemente, está excluído que o referido artigo 4.°, n.° 4, seja aplicável apenas aos elementos do contrato relativos ao transporte de mercadorias e que, no demais, o mesmo contrato possa ser regido pela lei determinada nos termos do artigo 4.°, n.° 2, da Convenção.
39 O Governo checo afirma que o artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção deve ser aplicado a título excepcional, na medida em que a aplicação de um direito diferente a determinadas partes de um contrato, mesmo que estas sejam separáveis do resto do contrato, viola os princípios da segurança jurídica e da «confiança legítima». Assim, como resulta do relatório Giuliano e Lagarde, a eventual separação das diferentes partes de um contrato deve responder às exigências da coerência total do seu conjunto.
40 A Comissão salienta que o fraccionamento do contrato previsto no artigo 4.°, n.° 1, primeiro período, da Convenção não é uma obrigação, mas uma faculdade de que o juiz da causa dispõe, que só pode ser exercida quando um contrato compreende diferentes partes, autónomas e separáveis. No processo principal, que tem por objecto um acordo complexo, em que está em causa a própria relação entre o fretamento e o transporte das mercadorias, o recurso ao fraccionamento, na opinião da Comissão, é uma solução artificial. Com efeito, se se tratasse de um contrato abrangido pelo âmbito do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção, não seria minimamente necessário proceder ao seu fraccionamento, uma vez que não seria preciso submeter eventuais aspectos acessórios relacionados com o transporte a uma legislação diferente da que se aplica ao objecto principal do contrato. Em especial, o direito a uma contrapartida da prestação e a prescrição estariam de tal forma estreitamente ligados ao contrato de base que não seria possível separá‑los, sob pena de se violar o princípio da segurança jurídica.
Resposta do Tribunal de Justiça
41 Com a segunda parte da segunda questão, bem como com a terceira e quarta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, em que circunstâncias é possível aplicar, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção, diferentes direitos nacionais à mesma relação contratual, nomeadamente no que se refere à prescrição dos direitos decorrentes de um contrato como o em causa no processo principal. O Hoge Raad der Nederlanden pergunta, nomeadamente, se, em caso de ser aplicado a um contrato de fretamento o critério de conexão previsto no artigo 4.°, n.° 4, da Convenção, este critério abrange apenas a parte do contrato relativa ao transporte de mercadorias.
42 A este propósito, há que recordar que, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção, uma parte do contrato pode, a título excepcional, estar sujeita a uma lei diferente da que é aplicada ao resto do contrato quando apresente uma conexão mais estreita com um país diferente daquele com que as outras partes no contrato têm conexão.
43 Decorre do teor desta disposição que a norma que prevê o fraccionamento do contrato tem carácter excepcional. A este respeito, o relatório Giuliano e Lagarde refere que a expressão «a título excepcional» do artigo 4.°, n.° 1, último período, «deve interpretar‑se […] no sentido de que o juiz deve recorrer ao fraccionamento com a menor frequência possível».
44 Para determinar as condições em que o juiz pode proceder à separação do contrato, há que considerar que a Convenção, como foi recordado nas observações preliminares dos n.os 22 e 23 do presente acórdão, visa elevar o nível de segurança jurídica, reforçando a confiança na estabilidade das relações entre as partes do contrato. Esse objectivo não pode ser alcançado se o sistema que determina a lei aplicável não for claro e se esta lei não for previsível com um certo grau de certeza.
45 Como afirmou o advogado‑geral nos n.os 83 e 84 das suas conclusões, a possibilidade de dividir um contrato em várias partes para o submeter a uma pluralidade de leis viola os objectivos da Convenção e só deve ser admitida quando o contrato reúna uma pluralidade de partes que possam ser consideradas autónomas umas em relação às outras.
46 Portanto, para verificar se uma parte do contrato pode ser sujeita a uma lei diferente, importa determinar se o seu objecto é autónomo relativamente ao do resto do contrato.
47 Se for esse o caso, cada parte do contrato deve ser submetida a uma única lei. Assim, nomeadamente no que se refere às regras relativas à prescrição de um direito, estas devem integrar a mesma ordem jurídica que é aplicada à correspondente obrigação. A este respeito, cumpre recordar que, de acordo com o artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da Convenção, a lei aplicável ao contrato regula, nomeadamente, a prescrição das obrigações.
48 Em face do exposto, há que responder à segunda parte da segunda questão e à terceira e quarta questões que o artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção deve ser interpretado no sentido de que uma parte do contrato só pode ser regulada por uma lei diferente da que é aplicada ao resto do contrato quando tiver um objecto autónomo.
49 Quando o critério de conexão aplicado a um contrato de fretamento for o do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção, esse critério deve ser aplicado a todo o contrato, a menos que a parte do contrato relativa ao transporte não seja autónoma do resto do contrato.
Quanto à quinta questão, relativa à aplicação do artigo 4.°, n.° 5, segundo período, da Convenção
Observações submetidas ao Tribunal de Justiça
50 Na opinião do Governo neerlandês, o artigo 4.°, n.° 5, segundo período, da Convenção enuncia uma derrogação dos critérios previstos no artigo 4.°, n.os 2 a 4, dessa mesma Convenção. Consequentemente, uma conexão considerada «ligeira» com um país diferente dos designados com base no referido artigo 4.°, n.os 2 a 4, é insuficiente para justificar uma derrogação desses critérios, pois, de outro modo, estes já não podiam ser considerados os principais critérios de conexão. Daqui resulta que a derrogação prevista no artigo 4.°, n.° 5, da Convenção só pode ser aplicada se resultar do conjunto das circunstâncias que esses critérios não têm valor de conexão efectivo e que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com outro país.
51 Segundo o Governo checo, o artigo 4.°, n.° 5, da Convenção não é uma lex specialis em relação a este artigo 4.°, n.os 2 a 4, mas é uma disposição distinta, relativa à situação em que decorre muito claramente do conjunto das circunstâncias do caso em apreço e da relação contratual no seu todo que o contrato tem uma conexão mais estreita com outro país não designado pela aplicação dos outros critérios de conexão.
52 Em contrapartida, a Comissão salienta que o artigo 4.°, n.° 5, da Convenção deve ser interpretado de forma estrita, no sentido de que só quando os critérios previstos nos n.os 2 a 4 do referido artigo não apresentem valor de conexão efectivo é que outros factores podem ser tidos em conta. A existência dessas presunções exige, com efeito, que lhes seja atribuída uma importância significativa. Consequentemente, os outros factores de conexão só podem ser tidos em conta quando, excepcionalmente, os referidos critérios não operem de forma eficaz.
Resposta do Tribunal de Justiça
53 Com a quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a excepção prevista no artigo 4.°, n.° 5, segundo período, da Convenção deve ser interpretada no sentido de que as presunções resultantes do referido artigo 4.°, n.os 2 a 4, só devem ser afastadas quando decorrer do conjunto das circunstâncias que os critérios aí previstos não têm valor de conexão efectivo ou se o juiz também as deve afastar quando dessas circunstâncias resultar que existe uma conexão mais estreita com outro país.
54 Como foi salientado nas observações preliminares dos n.os 24 a 26 do presente acórdão, o artigo 4.° da Convenção, que estabelece os critérios de conexão aplicáveis às obrigações contratuais na falta de escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato, consagra, no seu n.° 1, o princípio geral de que o contrato deve ser regulado pela lei do país com o qual tenha a conexão mais estreita.
55 A fim de assegurar um nível elevado de segurança jurídica nas relações contratuais, o artigo 4.° da Convenção estabelece, nos seus n.os 2 a 4, uma série de critérios que permitem presumir com que país o contrato apresenta a conexão mais estreita. Esses critérios actuam, com efeito, como presunções, no sentido de que o juiz da causa é obrigado a tê‑los em consideração para determinar a lei aplicável ao contrato.
56 Por força do artigo 4.°, n.° 5, primeiro período, da Convenção, o critério de conexão do local da residência da parte que efectua a prestação característica do contrato pode ser afastado se esse local não puder ser determinado. De acordo com esse artigo 4.°, n.° 5, segundo período, todas as «presunções» podem ser afastadas «sempre que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com outro país».
57 A este propósito, há que determinar a função e o objectivo do artigo 4.°, n.° 5, segundo período, da Convenção.
58 Resulta do relatório Giuliano e Lagarde que os redactores da Convenção consideraram indispensável «prever a possibilidade de aplicar uma lei sem ser aquelas a que se referem as presunções dos n.os 2, 3 e 4 sempre que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com outro país». Resulta também do referido relatório que o artigo 4.°, n.° 5, da Convenção deixa ao juiz «uma certa margem de apreciação quanto à presença, em cada caso, do conjunto de circunstâncias que justificam a não aplicação das presunções dos n.os 2, 3 e 4» e que essa disposição constitui «a inevitável contrapartida de uma norma de conflito geral, destinada a aplicar‑se a quase todas as categorias de contratos».
59 Decorre assim do relatório Giuliano e Lagarde que o artigo 4.°, n.° 5, da Convenção tem por objectivo compensar o regime das presunções resultante desse mesmo artigo, conciliando as exigências da segurança jurídica, garantidas pelo referido artigo 4.°, n.os 2 a 4, e a necessidade de prever uma determinada flexibilidade na determinação da lei que tem efectivamente conexão mais estreita com o contrato em causa.
60 Com efeito, uma vez que o objectivo principal do artigo 4.° da Convenção consiste em aplicar ao contrato a lei do país com o qual este tenha uma conexão mais estreita, o referido artigo 4.°, n.° 5, deve ser interpretado no sentido de que permite ao juiz da causa aplicar, em todos os casos, o critério que permite determinar a existência dessa conexão, afastando as «presunções» se estas não designarem o país com o qual o contrato tem uma conexão mais estreita.
61 Cumpre, então, verificar se essas presunções só podem ser afastadas quando não tiverem valor de conexão efectivo ou então quando o juiz verificar que o contrato tem uma conexão mais estreita com outro país.
62 Como resulta do teor e do objectivo do artigo 4.° da Convenção, o juiz deve proceder sempre à determinação da lei aplicável com base nas referidas presunções, que satisfazem a exigência geral de previsibilidade da lei e, portanto, de segurança jurídica nas relações contratuais.
63 Contudo, quando resultar claramente do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do designado com base nas presunções enunciadas no artigo 4.°, n.os 2 a 4, da Convenção, cabe ao referido juiz afastar a aplicação desse artigo 4.°, n.os 2 a 4.
64 Em face do exposto, há que responder à quinta questão que o artigo 4.°, n.° 5, da Convenção deve ser interpretado no sentido de que, quando resultar claramente do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do país determinado com base num dos critérios previstos no mencionado artigo 4.°, n.os 2 a 4, cabe ao juiz afastar esses critérios e aplicar a lei do país com o qual o referido contrato tem uma conexão mais estreita.
Quanto às despesas
65 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:
1) O artigo 4.°, n.° 4, último período, da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma, em 19 de Junho de 1980, deve ser interpretado no sentido de que o critério de conexão previsto no referido artigo 4.°, n.° 4, segundo período, só se aplica a um contrato de fretamento, que não seja relativo a uma única viagem, se não tiver por objecto principal a simples disponibilização de um meio de transporte, mas o transporte das mercadorias propriamente dito.
2) O artigo 4.°, n.° 1, segundo período, desta Convenção deve ser interpretado no sentido de que uma parte do contrato só pode ser regulada por uma lei diferente da que é aplicada ao resto do contrato quando tiver um objecto autónomo.
Quando o critério de conexão aplicado a um contrato de fretamento for o do artigo 4.°, n.° 4, da referida Convenção, esse critério deve ser aplicado a todo o contrato, a menos que a parte do contrato relativa ao transporte não seja autónoma do resto do contrato.
3) O artigo 4.°, n.° 5, da mesma Convenção deve ser interpretado no sentido de que, quando resultar claramente do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do país determinado com base num dos critérios previstos no mencionado artigo 4.°, n.os 2 a 4, cabe ao juiz afastar esses critérios e aplicar a lei do país com o qual o referido contrato tem uma conexão mais estreita.
Assinaturas
* Língua do processo: neerlandês.
apresentadas em 19 de Maio de 2009 1(1)
Processo C‑133/08
Intercontainer Interfrigo SC (ICF)
contra
Balkenende Oosthuizen BV
MIC Operations BV
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]
«Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980 – Lei aplicável às obrigações contratuais não tendo havido escolha pelas partes – Contrato de transporte de mercadorias – Critérios de conexão»
1. No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a interpretar, pela primeira vez, a Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (2) e, mais especialmente, o artigo 4.°, desta convenção que institui um mecanismo que permite designar a lei aplicável a um contrato não tendo sido estipulada pelas partes.
2. Neste processo, pede‑se ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre a questão de saber qual é, nos termos da referida disposição, a lei aplicável a um contrato que tem por objecto a colocação à disposição de um meio de transporte para o envio de mercadorias para uma viagem determinada.
3. Com efeito, o artigo 4.°, n.° 1, primeiro período, da Convenção de Roma estabelece uma regra geral para designar a lei aplicável ao contrato não tendo havido escolha pelas partes, acompanhada de uma presunção geral no n.° 2 deste artigo e de uma presunção especial, estabelecida no n.° 4 do referido artigo, aplicável ao contrato de transporte de mercadorias.
4. Pede‑se, ainda, ao Tribunal de Justiça que se pronuncie se a um contrato como o que está em causa no processo principal pode, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção de Roma, aplicar‑se, em parte, a lei de um país diferente do país com o qual o contrato, no seu todo, apresenta a conexão mais estreita.
5. Nas presentes conclusões, indicaremos as razões pelas quais consideramos que um contrato que tem por objecto a colocação à disposição de um meio de transporte para o envio de mercadorias para uma viagem determinada fica fora do âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma, quando o estabelecimento da empresa encarregue da colocação à disposição deste meio de transporte estiver situado num país diferente do país em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou o estabelecimento principal do co‑contratante.
6. Em seguida, explicaremos por que razão, em nosso entender, para determinar a lei aplicável a um contrato como este, o juiz nacional deve, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, primeiro período, da Convenção de Roma, designar a lei do país com o qual este contrato apresenta a conexão mais estreita.
7. Por último, exporemos os motivo pelos quais consideramos que ao contrato em causa no processo principal não pode ser aplicada, parcialmente, a lei do país que não é a lei do país com o qual o contrato no seu todo apresenta a conexão mais estreita.
I – Quadro jurídico
8. A Convenção de Roma entrou em vigor em 1 de Abril de 1991. A vontade dos Estados signatários era obviar à multiplicidade de normas de conflito existentes, uniformizando as normas sobre a lei aplicável às obrigações contratuais.
9. As disposições da Convenção de Roma são, por força do seu artigo 1.°, aplicáveis às obrigações contratuais, nas situações que impliquem um conflito de leis, com exclusão de determinadas matérias elencadas no n.° 2 do mesmo artigo (3).
10. A Convenção de Roma consagra, no seu artigo 3.°, o princípio da autonomia da vontade das partes. Com efeito, segundo esta disposição, «[o] contrato rege‑se pela lei escolhida pelas partes. Esta escolha deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa. Mediante esta escolha, as partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a uma parte do contrato».
11. Não tendo havido escolha, a Convenção de Roma enuncia um princípio geral comum a todos os contratos, com o objectivo de determinar a lei aplicável, acompanhado de presunções.
12. Assim, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, desta convenção, «[n]a medida em que a lei aplicável ao contrato não tenha sido escolhida nos termos do artigo 3.°, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita. Todavia, se uma parte do contrato for separável do resto do contrato e apresentar uma conexão mais estreita com um outro país, a essa parte poderá aplicar‑se, a título excepcional, a lei desse outro país».
13. O artigo 4.°, n.° 2, da Convenção de Roma tem a seguinte redacção:
«Sem prejuízo do disposto no n.° 5, presume‑se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde a parte que está obrigada a fornecer a prestação característica do contrato tem, no momento da celebração do contrato, a sua residência habitual ou, se se tratar de uma sociedade, associação ou pessoa colectiva, a sua administração central. Todavia, se o contrato for celebrado no exercício da actividade económica ou profissional dessa parte, o país a considerar será aquele em que se situa o seu estabelecimento principal ou, se, nos termos do contrato, a prestação deve ser fornecida por estabelecimento diverso do estabelecimento principal, o da situação desse estabelecimento.»
14. É admitida a aplicação de uma presunção especial aos contratos de transporte de mercadorias. Com efeito, nos termos do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma, «[a]presunção do n.° 2 não é admitida quanto ao contrato de transporte de mercadorias. Presume‑se que este contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país em que, no momento da celebração do contrato, o transportador tem o seu estabelecimento principal, se o referido país coincidir com aquele em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou do estabelecimento principal do expedidor».
15. Esta disposição precisa, seguidamente, que, «[p]ara efeitos de aplicação do presente [número], são considerados como contratos de transporte de mercadorias os contratos de fretamento relativos a uma única viagem ou outros contratos que tenham por objecto principal o transporte de mercadorias».
16. Por último, a Convenção de Roma prevê a possibilidade de o juiz nacional ilidir a presunção enunciada no seu artigo 4.°, n.° 2, se a prestação característica não puder ser determinada, e as presunções referidas no artigo 4.°, n.os 2 a 4, se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta a conexão mais estreita com outro país.
II – Matéria de facto e processo principal
17. A Intercontainer Interfrigo SC (a seguir «ICF») é uma sociedade sedeada na Bélgica. A Balkenende Oosthuizen BV (a seguir «Balkenende») e a MIC Operations BV (a seguir «MIC») são sociedades sedeadas nos Países Baixos.
18. No âmbito de um projecto de ligação ferroviária relativo ao transporte de mercadorias entre Amesterdão (Países Baixos) e Frankfurt (Alemanha), a ICF colocou vagões à disposição de Balkenende, actuando por conta da MIC. A ICF, que devia assegurar o transporte por caminho‑de‑ferro, comprou locomotivas e os serviços necessários para esta finalidade. A MIC, que devia providenciar a parte operacional do transporte, alugou a terceiros a capacidade de carga de que dispunha.
19. Não foi celebrado qualquer contrato escrito entre as partes. A ICF enviou apenas um projecto de contrato, designando o direito belga como sendo a lei aplicável ao contrato em questão. Este projecto de contrato não foi assinado pelas partes. No entanto, os acordos foram executados entre 20 de Outubro e 13 de Novembro de 1998 e entre 16 de Novembro e 21 de Dezembro de 1998.
20. Em 27 de Novembro de 1998, a ICF enviou uma primeira factura à MIC, no valor de 107 512,50 euros, correspondente aos serviços prestados entre 20 de Outubro e 13 de Novembro de 1998. Em 22 de Dezembro de 1998, foi enviada uma segunda factura à MIC, no valor de 67 100 euros, respeitante à execução dos acordos entre 16 de Novembro e 21 de Dezembro de 1998.
21. Como a MIC não pagou a factura de 27 de Novembro de 1998, a ICF interpelou‑a, em 7 de Setembro de 2001, para pagamento da referida factura, mas em vão.
22. A ICF recorreu para o Rechtbank te Haarlem (Países Baixos) e pediu que a Balkenende e a MIC fossem condenadas no pagamento da factura de 27 de Novembro de 1998 e o IVA correspondente, acrescida de juros e das despesas. A ICF sustentou que a lei aplicável ao contrato era a lei belga.
23. Por sentença de 28 de Janeiro de 2004, o Rechtbank te Haarlem considerou que o direito neerlandês se aplicava ao acordo. Como os créditos da ICF estavam prescritos, segundo o direito neerlandês, julgou a acção inadmissível.
24. A ICF interpôs recurso da referida sentença no Gerechtshof te Amsterdam, que confirmou a decisão do órgão jurisdicional de primeira instância e rejeitou a tese da ICF segundo a qual as partes tinham escolhido o direito belga como lei aplicável ao contrato, que foi enviado à Balkenende e à MIC, mas que não foi subscrito por estas sociedades.
25. No Gerechtshof, a ICF sustentou que o direito belga era aplicável, por força do artigo 4.°, n.° 2, da Convenção de Roma. Segundo o Gerechtshof, devia considerar‑se que o contrato em questão respeitava principalmente ao transporte de mercadorias, na acepção do artigo 4.°, n.° 4, último período, desta convenção. Além disso, no entendimento do Gerechtshof, este contrato tinha uma ligação mais estreita com os Países Baixos do que com a Bélgica, pelo que não se lhe aplicava a presunção prevista no artigo 4.°, n.° 2, da referida convenção.
26. A ICF recorreu para o Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos).
27. Por ter dúvidas quanto à interpretação do artigo 4.° da Convenção de Roma, o órgão jurisdicional de reenvio submeteu ao Tribunal de Justiça várias questões prejudiciais.
III – Questões prejudiciais
28. O Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma deve ser interpretado no sentido de que esta disposição apenas respeita ao fretamento por viagem e de que outras formas de fretamento ficam fora do seu âmbito de aplicação?
2) Se a resposta à [primeira] questão […] for afirmativa, o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma deve ser interpretado no sentido de que, na medida em que outros tipos de fretamento também tiverem por objecto o transporte de mercadorias, os respectivos contratos ficam, no tocante a esse transporte, abrangidos pelo âmbito de aplicação dessa disposição e, quanto ao resto, o direito aplicável é determinado pelo artigo 4.°, n.° 2, da Convenção de 1980?
3) Se a resposta à [segunda] questão […] for afirmativa, qual dos dois sistemas jurídicos indicados deve servir de base à apreciação da alegação de prescrição dos pedidos baseados no contrato?
4) Se o ponto central do contrato for o transporte de mercadorias, a distinção referida na [segunda] questão […] deve ser afastada e o direito aplicável a todos os aspectos do contrato deve ser determinado com base no artigo 4.°, n.° 2, da Convenção de [Roma]?
5) A excepção prevista no segundo período do n.° 5 do artigo 4.° da Convenção de [Roma] deve ser interpretada no sentido de que as presunções dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 4.° da mesma convenção só devem ser afastadas quando resultar do conjunto das circunstâncias que os critérios de conexão aí previstos não têm valor de conexão efectivo, ou também devem ser afastadas quando dessas circunstâncias resultar que há uma conexão predominante com um outro país?»
IV – Apreciação
A – Observações preliminares
29. Em primeiro lugar, importa esclarecer que, por força dos protocolos de 19 de Dezembro de 1988 (4), que entraram em vigor em 1 de Agosto de 2004, o Tribunal de Justiça é competente para interpretar as disposições da Convenção de Roma.
30. Por outro lado, por força do artigo 2.°, alínea a), do Primeiro Protocolo 89/128, o Hoge Raad der Nederlanden tem o direito de pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre uma questão suscitada num processo pendente nesse órgão jurisdicional relativa à interpretação das disposições da Convenção de Roma.
B – Quanto às questões prejudiciais
31. O Tribunal de Justiça é chamado a interpretar, pela primeira vez, a Convenção de Roma e, mais precisamente, a disposição desta convenção relativa à lei aplicável ao contrato não tendo havido escolha pelas partes.
32. A apreciação das questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio requer a apresentação prévia do conteúdo do sistema instituído pela Convenção de Roma.
1. Sistema instituído pela Convenção de Roma
33. Com o objectivo de prosseguir, no domínio do direito internacional privado, a obra de unificação jurídica, iniciada pela adopção da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução das decisões em matéria civil e comercial (5), os Estados‑Membros adoptaram a Convenção de Roma.
34. Segundo o seu preâmbulo, esta convenção tem o objectivo de estabelecer regras uniformes relativamente à lei aplicável às obrigações contratuais. No relatório respeitante à Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (6) é referido que a referida convenção nasceu da preocupação em suprimir os inconvenientes que resultam da diversidade das normas de conflito, em particular no domínio dos contratos. Segundo Vogelaar, então director‑geral do mercado interno e da aproximação das legislações, na Comissão, a grande vantagem da Convenção de Roma era que elevaria o nível da segurança jurídica, reforçaria a confiança na estabilidade das relações jurídicas, facilitaria os acordos sobre a competência em função do direito aplicável e aumentaria a protecção dos direitos adquiridos em todo o direito privado.
35. O objectivo da Convenção de Roma é, pois, uniformizar as normas de conflito para que sejam designadas as mesmas leis, independentemente do local onde a decisão for proferida.
36. Com vista à realização deste objectivo, a Convenção de Roma consagra, no seu artigo 3.°, o princípio da autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável às obrigações contratuais. Segundo este princípio, comum aos Estados‑Membros, o contrato rege‑se pela lei escolhida pelas partes.
37. Vimos que, não tendo havido escolha, o artigo 4.° da Convenção de Roma fornece ao juiz os elementos necessários à determinação da lei aplicável. O sistema assim instituído por esta disposição articula‑se, em nosso entender, da seguinte forma.
38. O artigo 4.°, n.° 1, da Convenção de Roma prevê que, não tendo havido escolha da lei aplicável pelas partes, «o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita. Todavia, se uma parte do contrato for separável do resto do contrato e apresentar uma conexão mais estreita com um outro país, a essa parte poderá aplicar‑se, a título excepcional, a lei desse outro país».
39. O primeiro período desta disposição, que pode afigurar‑se um pouco vago, parece na realidade reflectir bastante bem as concepções adoptadas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros.
40. Com efeito, o relatório Giuliano Lagarde mostra‑nos que, na maioria dos Estados‑Membros, a concepção objectiva para a aplicação da lei ao contrato prevalece sobre os elementos de conexão fixos e rígidos (7). Não tendo havido escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato, o juiz deve procurar os indícios que permitam localizar o contrato num país ou noutro.
41. Por seu turno, o artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção de Roma está relacionado com o que é comummente denominado «fraccionamento» de um contrato. Na última parte deste desenvolvimento, voltaremos a falar mais precisamente desta possibilidade de fraccionamento.
42. A flexibilidade aparente do artigo 4.°, n.° 1, da Convenção de Roma é um tanto refreada por toda uma série de presunções constantes dos números subsequentes.
43. Assim, o artigo 4.°, n.° 2, da Convenção de Roma estabelece: «presume‑se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde a parte que está obrigada a fornecer a prestação característica do contrato tem, no momento da celebração do contrato, a sua residência habitual ou, se se tratar de uma sociedade, associação ou pessoa colectiva, a sua administração central. Todavia, se o contrato for celebrado no exercício da actividade económica ou profissional dessa parte, o país a considerar será aquele em que se situa o seu estabelecimento principal ou, se, nos termos do contrato, a prestação dever ser fornecida por estabelecimento diverso do estabelecimento principal, o da situação desse outro estabelecimento».
44. O relatório Giuliano Lagarde indica que esta disposição concretiza e objectiva a noção de «conexão mais estreita» e conduz a uma simplificação considerável na determinação da lei aplicável ao contrato não tendo havido escolha pelas partes (8). Precisa‑se igualmente que a conexão do contrato a partir «[d]o interior» permite evitar que esta conexão se faça através de elementos exteriores ao contrato e que não tenham vínculos reais com o mesmo, como, por exemplo, a nacionalidade das partes ou o lugar de celebração do contrato (9).
45. A escolha do lugar da residência, da administração central ou do estabelecimento do fornecedor da prestação característica, como sendo o da lei aplicável ao contrato, pode igualmente explicar‑se, em nosso entendimento, pelo facto de esta lei ter a vantagem de ser aquela que o fornecedor desta prestação pode facilmente conhecer, especialmente sem a barreira da língua, e aquela cuja aplicação pode legitimamente contar.
46. Além disso, devido à sua actividade profissional, o fornecedor da prestação característica é levado a multiplicar os contratos. Portanto, parece desejável, por razões práticas, que todos os contratos que celebra fiquem sujeitos à mesma lei. Pode, certamente, objectar‑se que o mesmo se aplica a um contrato sinalagmático, para o co‑contratante. Contudo, na grande maioria dos casos, a contraprestação consiste unicamente no pagamento de uma soma em dinheiro.
47. Por conseguinte, parece ser mais adequada a escolha do lugar da residência, da administração central ou do estabelecimento do fornecedor da prestação característica como o da lei aplicável ao contrato.
48. Esta presunção geral conhece duas excepções, previstas no artigo 4.°, n.os 3 e 4, da Convenção de Roma.
49. Com efeito, em primeiro lugar, «[q]uando o contrato tiver por objecto um direito real sobre bem imóvel, ou um direito de uso de um bem imóvel, presume‑se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde o imóvel se situa».
50. A admissão, quanto a este tipo de contrato, de uma presunção especial que designa a lex rei sitae pode explicar‑se pelo facto de, neste caso, o centro de gravidade ser o próprio imóvel.
51. Parece, aliás, que é a razão pela qual o relatório Giuliano Lagarde precisa que o artigo 4.°, n.° 3, da Convenção de Roma não abrange os contratos que tenham por objecto a construção ou a reparação de imóveis (10). Nestes contratos, o objecto não é um direito sobre o imóvel, mas uma prestação de serviços, como as obras a efectuar nesse imóvel. Neste caso, podemos pressupor que a lei aplicável não tendo havido escolha pelas partes será definida pela presunção geral e será a lei do lugar da residência do fornecedor da prestação característica.
52. Em segundo lugar, o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma prevê que «[a] presunção do n.° 2 não é admitida quanto ao contrato de transporte de mercadorias. Presume‑se que este contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país em que, no momento da celebração do contrato, o transportador tem o seu estabelecimento principal, se o referido país coincidir com aquele em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou do estabelecimento principal do expedidor. Para efeitos de aplicação do presente [número], são considerados como contratos de transporte de mercadorias os contratos de fretamento relativos a uma única viagem ou outros contratos que tenham por objecto principal o transporte de mercadorias».
53. O estabelecimento de uma presunção especial para o contrato de transporte de mercadorias pode ser explicado pelo facto de que, muitíssimas vezes, nas relações internacionais, o lugar da residência habitual do fornecedor da prestação característica, concretamente, o transportador, não tem vínculos objectivos com o contrato, uma vez que o objecto principal de tal contrato é o envio da mercadoria. Tal é o caso, por exemplo, do transportador, estabelecido na Alemanha, encarregue de transportar a mercadoria de um expedidor francês da França para a Itália.
54. Por conseguinte, só quando o país, em cujo território o transportador tem a sua residência habitual, coincide com aquele em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou o do estabelecimento principal do expedidor é que o contrato se rege pela lei deste país. Existe, assim, convergência de vários factores de localização para um mesmo lugar.
55. Se os dois requisitos não forem preenchidos, o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma não se aplica.
56. Esta disposição não explicita a solução que deve, então, ser adoptada.
57. Parece‑nos razoável pensar que, nessa situação, o juiz encarregue de definir a lei aplicável ao contrato deve fazer referência à norma geral estabelecida no artigo 4.°, n.° 1, da convenção. Poderá, assim, apreciar os elementos do contrato que lhe permitem localizar o seu centro de gravidade.
58. Assim, a questão que se coloca é saber se essa situação é abrangida pela presunção geral estabelecida no artigo 4.°, n.° 2, da referida convenção. Não o pensamos, e isto pelos motivos seguintes.
59. Recordamos que o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma prevê que «[a] presunção do n.° 2 não é admitida quanto ao contrato de transporte de mercadorias».
60. Consideramos que este primeiro período deve ser entendido no sentido de que, não havendo coincidência entre o lugar da residência do transportador e o da carga ou da descarga ou o do estabelecimento principal do expedidor, a presunção do n.° 2 não se aplica em nenhum caso.
61. Com efeito, a presunção especial estabelecida no artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma pressupõe, na realidade, a aplicação da lei do lugar da residência do fornecedor da prestação característica, isto é, o transportador.
62. Vimos que os redactores da Convenção de Roma consideraram que a residência do transportador não era um elemento suficiente para vincular o contrato à lei do lugar desta residência. Outro elemento, concretamente, o lugar de carga, de descarga ou o do estabelecimento principal do expedidor, deve confirmar a conexão estreita do contrato com o país de residência do transportador.
63. Dado que os redactores tiveram o cuidado de submeter a esses requisitos a conexão de um contrato de transporte de mercadorias com a lei do lugar da residência do transportador, parece‑nos que, remeter para a presunção geral estabelecida no artigo 4.°, n.° 2, da Convenção de Roma, nos casos em que esses requisitos não estão preenchidos, enfraqueceria a utilidade do artigo 4.°, n.° 4, da convenção.
64. Como se referiu supra, o contrato de transporte de mercadorias é um contrato complexo, cujos elementos de conexão são numerosos e dispersos. O transportador pode estar sedeado na França, o expedidor na Itália e o transporte pode efectuar‑se entre os Países Baixos e a Bélgica. Nenhum destes lugares parece prevalecer sobre o outro. Em nosso entendimento, é por este motivo, em especial, que o contrato de transporte de mercadorias foi objecto de uma presunção especial na Convenção de Roma.
65. Parece‑nos, pois, que, se não estiverem reunidos os requisitos do artigo 4.°, n.° 4, da convenção, o juiz deverá, caso a caso, procurar o país que tem a conexão mais estreita com o contrato, em conformidade com a norma geral estabelecida no artigo 4.°, n.° 1, da referida convenção (11).
66. Embora a Convenção de Roma tenha por objectivo instituir maior previsibilidade na aplicação da norma de conflito, através da combinação de presunções; existe, no entanto, um elemento, retomado no Regulamento Roma I, que tende a demonstrar que foi mantida uma certa flexibilidade no sistema da convenção.
67. Com efeito, o artigo 4.°, n.° 5, da Convenção de Roma prevê que «[o] disposto no n.° 2 não se aplica se a prestação característica não for determinável. As presunções dos n.os 2, 3 e 4 não serão admitidas sempre que do conjunto das circunstâncias resulte que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com outro país».
68. Entendemos que esta disposição deve ser interpretada do modo seguinte: se a prestação característica não puder ser determinada, através da aplicação do artigo 4.°, n.° 5, da Convenção de Roma, deve voltar‑se à norma geral, estabelecida no artigo 4.°, n.° 1, da convenção, que prevê que o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta a conexão mais estreita.
69. Por outro lado, mesmo no caso em que a prestação característica é determinada, a presunção estabelecida no artigo 4.°, n.° 2, da convenção pode ser ilidida se do conjunto das circunstâncias resultar que o contrato apresenta a conexão mais estreita com outro país. O mesmo se aplica relativamente às presunções estabelecidas no artigo 4.°, n.os 3 e 4, da Convenção de Roma.
70. O relatório Giuliano Lagarde indica que a razão de ser do artigo 4.°, n.° 5, é que, como a Convenção de Roma estabelece uma norma de conflito de carácter geral, destinada a aplicar‑se a quase todas as categorias de contratos, a contrapartida inevitável é deixar uma margem de apreciação ao juiz, sempre que o conjunto das circunstâncias demonstrar que a conexão inicialmente presumida como a mais estreita foi suplantada por outra (12).
71. A aplicação do artigo 4.°, n.° 5, da Convenção de Roma é objecto de debate. Com efeito, parecem destacar‑se duas interpretações. Segundo a primeira interpretação, esta disposição é subsidiária das presunções gerais e especiais. Esta interpretação, minoritária, parece ter sido adoptada pelos órgãos jurisdicionais escoceses e neerlandeses. A referida disposição apenas tem aplicação quando, atendendo às circunstâncias particulares do caso concreto, o estabelecimento principal do fornecedor da prestação característica do contrato não tem valor real enquanto critério de conexão (13).
72. Segundo esta interpretação, as presunções previstas no artigo 4.°, n.os 2 a 4, da Convenção de Roma são consideradas fortes.
73. A segunda interpretação quanto à aplicação do artigo 4.°, n.° 5, da convenção é mais flutuante e mais flexível. Parece que a exclusão das presunções é feita sem normas estritas (14), dado que os órgãos jurisdicionais decidem aplicar a referida disposição sem estudar previamente as presunções ou sustentando a exclusão dessas presunções.
74. Entendemos que, por razões que se prendem com o respeito pelo princípio da segurança jurídica e com o fim de garantir o objectivo de previsibilidade da Convenção de Roma, deve recorrer‑se ao artigo 4.°, n.° 5, da convenção na medida em que foi demonstrado que as presunções estabelecidas no artigo 4.°, n.os 2 a 4, da convenção não reflectem a conexão real do contrato com a localização assim determinada (15).
75. Com efeito, vimos que a Convenção de Roma foi adoptada a fim de suprimir os inconvenientes resultantes da diversidade das normas de conflito e de reforçar a previsibilidade da aplicação destas normas. O Regulamento Roma I retoma, aliás, estes objectivos. No décimo sexto considerando deste regulamento refere‑se que, «[a] fim de contribuir para o objectivo geral do [referido] regulamento que consiste em garantir a segurança jurídica no espaço de justiça europeu, as normas de conflitos de leis deverão apresentar um elevado grau de previsibilidade».
76. Para reforçar o nível da segurança jurídica, os redactores da Convenção de Roma tiveram o cuidado de estabelecer presunções. Estas presunções têm por objectivo designar a lei do país cujos vínculos com o contrato se presumem serem os mais fortes. É o caso, por exemplo, de um contrato de arrendamento cuja lei designada é, por força do artigo 4.°, n.° 3, da convenção, a lei do país onde se situa o imóvel em questão.
77. Contudo, e nisso reside, em nosso entendimento, a razão de ser do artigo 4.°, n.° 5, da convenção, se o juiz considerar que a lei do país assim designada não tem vínculos reais com o contrato, as presunções, que são presunções simples (16), podem ser ilididas (17).
78. Para retomar o exemplo do contrato de arrendamento, podemos admitir que um contrato deste tipo, celebrado entre dois nacionais franceses, cujo objecto é uma locação sazonal na Itália, tem vínculos mais estreitos com a França. Neste caso, vários elementos convergem para um país diferente do país que é o designado pela presunção. Os contratantes são ambos nacionais franceses, o contrato foi, sem dúvida, celebrado em França e é, a priori, no seu interesse que a lei francesa seja a lei aplicável ao contrato, quanto mais não seja por razões atinentes à língua e porque esta lei é a que pressupostamente conheçam.
79. Esta flexibilidade na aplicação da norma de conflito pode justificar‑se pela vontade de não impor, de modo arbitrário, a lei de um país que, afinal, tem poucos vínculos reais com o contrato.
80. Da mesma maneira, reencontramos uma certa flexibilidade na aplicação da norma de conflito do artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção de Roma. Com efeito, esta disposição prevê que, quando uma parte do contrato é separável do resto do contrato e apresenta uma conexão mais estreita com outro país, pode aplicar‑se a essa parte do contrato, a título excepcional, a lei desse outro país.
81. A questão do fraccionamento de um contrato parece ter sido debatida pelo grupo de trabalho encarregue de redigir o projecto da Convenção de Roma.
82. Com efeito, no relatório Giuliano Lagarde refere‑se que «nenhuma delegação deseja encorajar o fraccionamento», mas que «a maioria dos peritos era favorável a deixar aberta [uma] possibilidade [destas] […] na condição [de que o juiz] o faça a título excepcional e para uma parte autónoma e separável, relativamente ao contrato e não ao litígio» (18).
83. Segundo P. Lagarde, a noção de separabilidade de um contrato deve ser entendida estritamente. Em especial, não é pelo facto de duas obrigações serem cumpridas em dois países diferentes que são separáveis. P. Lagarde prossegue referindo que, para que uma parte do contrato possa ser considerada separável, é preciso que ela possa constituir o objecto de uma solução separada, independente da solução dada aos outros elementos do contrato (19).
84. Assim, um contrato que contenha ao mesmo tempo uma venda de material e uma promessa de assistência técnica poderia estar sujeito a leis diferentes, dado que estes dois aspectos são objectivamente separáveis (20).
85. Também esclarecemos que o relatório Giuliano Lagarde refere que «[a] expressão ‘a título excepcional’ deve interpretar‑se, portanto, no sentido de que o juiz deve recorrer ao fraccionamento com a menor frequência possível» (21).
86. A opção de só permitir o fraccionamento a título excepcional pode ser facilmente compreendida pelo desejo de não comprometer a coerência de um contrato e de não resultar em escolhas de leis que levem a resultados contraditórios (22).
87. Os próprios órgãos jurisdicionais nacionais são reticentes em relação à aplicação do fraccionamento. A Court of Appeal (England & Wales), por exemplo, indicou que o fraccionamento apenas pode ser considerado para cláusulas distintas e autónomas no mesmo contrato e que podem ser tratadas de modo separado do resto do contrato (23).
88. Da mesma maneira, o Bundesgerichtshof (Alemanha), muito antes da elaboração da Convenção de Roma, considerou que, em regra, há que determinar um centro de gravidade do contrato e aplicar um único direito a uma relação jurídica (24).
89. O fraccionamento de um contrato tem, pois, limites e deve, por conseguinte, ser aplicado de modo excepcional. Não deve levar à destruição do objectivo principal da Convenção de Roma que é garantir uma certa previsibilidade na aplicação das normas de conflitos de leis.
90. Passamos, agora, a examinar as questões prejudiciais apresentadas pelo órgão jurisdicional de reenvio à luz destas considerações.
2. Questões prejudiciais
91. Em nosso entendimento, há que tratar as questões prejudiciais do modo seguinte.
92. Em primeiro lugar, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se um contrato como o que está em causa, é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma.
93. Seguidamente, com a sua quinta questão, pede‑se ao Tribunal de Justiça que precise o alcance do artigo 4.°, n.° 5, desta convenção que prevê que as presunções determinadas no artigo 4.°, n.os 2 a 4, da referida convenção possam ser afastadas, quando resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta a conexão mais estreita com outro país.
94. Por último, com a sua segunda, terceira e quarta questões, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a possibilidade de aplicar o fraccionamento a um contrato como o que está em causa. Submete esta questão, em especial, atendendo a que, segundo a lei aplicável, diferem os prazos de prescrição dos direitos decorrentes do contrato.
95. Pensamos que há que estudar a primeira e a quinta questão conjuntamente. Com efeito, com estas questões, entendemos que o órgão jurisdicional de reenvio solicita ao Tribunal de Justiça que, tendo em conta o sistema instituído pelo artigo 4.° da Convenção de Roma, determine a lei aplicável a um contrato como o que está em causa no processo principal.
96. Assim, indicaremos, por um lado, as razões pelas quais entendemos que este contrato não pode estar sujeito ao artigo 4.°, n.° 4, da convenção e, por outro, as razões pelas quais consideramos que, a fim de determinar a lei aplicável ao referido contrato, o juiz de reenvio deve procurar o país que tem a conexão mais estreita com o contrato em causa, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, da convenção.
97. Por último, iremos expor os motivos pelos quais consideramos que este contrato não pode ser objecto de um fraccionamento.
a) Quanto à aplicação do sistema instituído pelo artigo 4.° da Convenção de Roma ao contrato em causa
98. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o contrato celebrado entre a ICF e a MIC pode ser qualificado como contrato de transporte de mercadorias e, assim, ser abrangido pelo artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma.
99. Recordamos que, por força deste contrato, a ICF colocou vagões à disposição da sociedade Balkenende, que por sua vez actuava por conta da MIC, e assegurou o transporte de mercadorias por caminho‑de‑ferro entre Amesterdão e Frankfurt. Apenas a MIC, que tinha dado em locação a terceiros a capacidade de carga de mercadorias de que dispunha, se ocupou da parte operacional do transporte.
100. O órgão jurisdicional de reenvio indica igualmente que a ICF é uma sociedade sedeada na Bélgica, ao passo que a Balkenende e a MIC estão estabelecidas no território dos Países Baixos.
101. Como vimos no n.° 54 das presentes conclusões, o artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma só deve aplicar‑se se o país em cujo território reside o transportador for o mesmo que aquele em que está situado o lugar da carga ou da descarga ou o estabelecimento principal do expedidor. Nesta fase da análise, pouco importa saber se o contrato celebrado entre, por um lado, a ICF e, por outro, a Balkenende e a MIC pode ser qualificado como contrato de transporte de mercadorias na acepção desta disposição.
102. Assim, há que assinalar que, no caso vertente, estes lugares não coincidem. Com efeito, a ICF está sedeada na Bélgica, enquanto os co‑contratantes, a Balkenende e a MIC, estão sedeadas nos Países Baixos. Além disso, o transporte ocorreu entre Amesterdão e Frankfurt, o que significa que a carga se realizou nos Países Baixos e a descarga na Alemanha.
103. Por conseguinte, pensamos que, mesmo partindo do princípio de que o contrato em causa seja qualificado como contrato de transporte de mercadorias, na acepção do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma, este contrato não pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação da referida disposição, porque não estão preenchidos os requisitos exigidos.
104. Por conseguinte, de acordo com o que referimos anteriormente, se os requisitos da referida disposição não estiverem reunidos, entendemos que se aplica a norma geral enunciada no artigo 4.°, n.° 1, da Convenção de Roma.
105. O juiz do órgão jurisdicional de reenvio deve, pois, procurar o país que tem a conexão mais estreita com o contrato no processo principal. Nessa procura, podem ser tomados em conta vários elementos. Poderão, nomeadamente, ser tomados em consideração o lugar da celebração do contrato, o lugar da sua execução, o lugar da residência das partes e o objecto do contrato. Assim, estes elementos levarão o juiz a um lugar de convergência, o centro de gravidade do contrato.
106. Os poucos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio parecem fazer dos Países Baixos o centro de gravidade do contrato. Com efeito, recordamos, que a ICF está sedeada na Bélgica, a Balkenende e a MIC são sociedades sedeadas nos Países Baixos e que o transporte se realizou de Amesterdão para Frankfurt.
107. Assim, deverá aplicar‑se a lei neerlandesa a este contrato. Em qualquer caso, é ao juiz nacional que compete indagar com que país o referido contrato tem a conexão mais estreita.
108. Tendo em conta todos estes elementos, entendemos que um contrato que tem por objecto a colocação à disposição de um meio de transporte com o objectivo de enviar mercadorias para uma viagem determinada não está abrangido pelo artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma, quando o estabelecimento da empresa encarregue da colocação à disposição deste transporte se situar num país diferente do país em que se situa o lugar da carga ou da descarga ou o do estabelecimento principal do co‑contratante.
109. Pensamos, portanto, que, a fim de determinar a lei aplicável a tal contrato, o juiz nacional deve, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, da Convenção de Roma, procurar a lei do país com o qual este contrato apresenta a conexão mais estreita.
b) Quanto à possibilidade de fraccionamento
110. Com a sua segunda, terceira e quarta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se é possível aplicar o fraccionamento a um contrato como o que está em causa no processo principal. Submete esta questão, em especial, atendendo a que, segundo a lei aplicável, os prazos de prescrição dos direitos decorrentes do contrato são diferentes.
111. Com estas questões, entendemos que o órgão jurisdicional de reenvio pretende, de facto, saber se a obrigação de a Balkenende e a MIC fornecerem a contrapartida da obrigação que a ICF cumpriu pode ser destacada do resto do contrato que estas partes celebraram, dado que o que está em causa, segundo o direito aplicável, é a acção da ICF estar prescrita ou não.
112. Como vimos, o fraccionamento está previsto a título excepcional no artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção de Roma.
113. Finalmente, o fraccionamento só tem interesse se a parte em relação à qual se prevê aplicar uma lei diferente pode ser separada de todo o contrato de modo autónomo e se esta parte tiver a conexão mais estreita com a lei de outro país.
114. No presente processo, parece‑nos que é difícil admitir um fraccionamento. O contrato celebrado entre a ICF, por um lado, e a Balkenende e a MIC, por outro, tem por objecto uma prestação única que é a colocação à disposição de um meio de transporte para o envio de mercadorias para uma viagem determinada e cuja contrapartida consiste no pagamento de uma soma em dinheiro. Esta reciprocidade das obrigações das partes parece impor a unicidade da lei aplicável ao contrato.
115. Em nosso entender, o mesmo não sucederia se o contrato em causa contivesse obrigações múltiplas, separáveis umas das outras, como seria, por exemplo, após a mercadoria enviada para Frankfurt, a obrigação de entregá‑la no território alemão. Estas duas obrigações parecer‑nos‑iam, então, objectivamente separáveis.
116. Acresce, além disso, que, mesmo pressupondo que uma parte do contrato em causa no processo principal possa ser separada do resto do contrato, não é menos verdade que, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção de Roma, o juiz deve assegurar‑se de que esta parte autónoma tem a conexão mais estreita com a lei de outro país. Tendo em conta o que indicámos nos n.os 106 e 107 das presentes conclusões, parece‑nos difícil ligar uma parte qualquer do contrato ao direito belga, direito segundo o qual, recordamo‑lo, a acção da ICF não está prescrita.
117. Por conseguinte, entendemos que, no âmbito de um contrato cujo objecto é a colocação à disposição de um meio de transporte para o envio de mercadorias para uma viagem determinada, não se aplica o artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção de Roma.
V – Conclusão
118. Vistas todas as precedentes considerações, propomos que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo à questão prejudicial submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden:
«Um contrato que tem por objecto a colocação à disposição de um meio de transporte para o envio de mercadorias para uma viagem determinada não é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 4, da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 (Convenção de Roma), quando o estabelecimento da empresa encarregue da colocação à disposição deste transporte se situa num país diferente do país em que está situado o lugar da carga ou da descarga ou o estabelecimento principal do co‑contratante.
A lei aplicável a tal contrato, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, primeiro período, da Convenção de Roma, é a do país com o qual este contrato apresenta a conexão mais estreita. Esta conexão pode ser deduzida, por exemplo, do facto de, num contrato como o que está em causa no processo principal, os co‑contratantes estarem sedeados nos Países Baixos e o lugar de carga situar‑se neste mesmo país.
O artigo 4.°, n.° 1, segundo período, da Convenção de Roma deve ser interpretado no sentido de que pode ser aplicada a lei de outro país a uma parte de um contrato, se esta parte for separável de modo autónomo de todo o contrato. Não responde a esta exigência um contrato como o que está em causa, cujo objecto é uma prestação única, que é a colocação à disposição de um meio de transporte para o envio de mercadorias para uma viagem determinada.»
1 – Língua original: francês.
2 – Convenção aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 (a seguir «Convenção de Roma») (JO L 266, p. 1; EE 01 F3 p. 36).
3 – Trata‑se, por exemplo, de matéria de estado e capacidade das pessoas singulares, das obrigações contratuais relativas a testamentos e sucessões, dos regimes matrimoniais, dos direitos e dos deveres decorrentes das relações de família, de parentesco, de casamento ou, ainda, das convenções arbitrais e de escolha de foro.
4 – Primeiro Protocolo 89/128/CEE relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 e das convenções de adesão de 10 de Abril de 1984, de 18 de Maio de 1992 e de 29 de Novembro de 1996 (JO 1989, L 48, p. 1); e Segundo Protocolo 89/129/CEE que atribui ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias determinadas competências em matéria de interpretação da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 e das convenções de adesão de 10 de Abril de 1984, de 18 de Maio de 1992 e de 29 de Novembro de 1996 (JO 1989, L 48, p. 17).
5 – JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186. Esta convenção foi substituída pelo Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).
6 – Relatório de Mario Giuliano, professor da Universidade de Milão, e de Paul Lagarde, professor da Universidade de Paris I (JO 1980, C 282, p. 1, a seguir «relatório Giuliano Lagarde»).
7 – V. artigo 4.°, n.° 1, do relatório Giuliano Lagarde.
8 – V. artigo 4.°, n.° 3, sétimo parágrafo, do relatório Giuliano Lagarde.
9 – V. artigo 4.°, n.° 3, segundo parágrafo, do relatório Giuliano Lagarde.
10 – V. artigo 4.°, n.° 4, quarto parágrafo, do relatório Giuliano Lagarde.
11 – O Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO L 177, p. 6, a seguir «Regulamento Roma I), parece colmatar essa lacuna deixada pelo artigo 4.°, n.° 4, da Convenção de Roma. Com efeito, por força do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento Roma I, aplicável aos contratos de transporte de mercadorias, se os requisitos estabelecidos no artigo 4.°, n.° 4, da referida convenção e retomados no Regulamento Roma I não estiverem reunidos, aplica‑se a lei do país no qual se situa o lugar de entrega acordado pelas partes. Podemos pensar, portanto, que a segurança jurídica e a previsibilidade da lei aplicável prevaleceram sobre a flexibilidade da aplicação da norma de conflito.
12 – V. artigo 4.°, n.° 7, quarto e quinto parágrafos, do relatório Giuliano Lagarde.
13 – V., em especial, acórdãos do Hoge Raad der Nederlanden, de 25 de Setembro de 1992, Société Nouvelle des Papeteries de l’AA SA v. BV Machinefabriek BOA (Nederlandse Jurisprudentie 1992, n.° 750), bem como da Court of Session (Scotland), de 12 de Julho de 2002, Caledonia Subsea Ltd v. Micoperi Srl (2002 SLT 1022).
14 – V., em especial, acórdão da Cour de cassation française de 19 de Dezembro de 2006 (cass com n.° 05‑19.723). Assim, a Cour de cassation decidiu que, «segundo o artigo 4.°, n.° 1, da Convenção de Roma, o contrato rege‑se pela lei do país com o qual apresenta a conexão mais estreita; que resulta da conjugação dos n.os 2 e 5 que, para determinar a lei mais apropriada, o juiz do processo deve proceder a uma comparação dos vínculos existentes entre o contrato e, por um lado, o país em que a parte que deve fornecer a prestação característica tem, no momento da celebração do contrato, a sua residência habitual, e, por outro, o outro país em causa, e procurar aquele com o qual apresenta a conexão mais estreita». V., igualmente, acórdão da High Court of Justice (England & Wales), de 13 de Dezembro de 1993, Bank of Baroda v. Vysya Bank ([1994] 2 Lloyd’s Rep. 87, 93), no qual o órgão jurisdicional inglês não aplicou a presunção do artigo 4.°, n.° 2, da Convenção de Roma mas o artigo 4.°, n.° 5, da convenção, que liga o contrato à lei com a qual mantém, segundo as circunstâncias de cada caso concreto, a conexão mais estreita.
15 – V., neste sentido, Livro Verde relativo à transformação da Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais num instrumento comunitário e sua modernização [COM(2002) 654 final, pp. 27 e 28].
16 – V. artigo 4.°, n.° 9, do relatório Giuliano Lagarde.
17 – Esta possibilidade foi, aliás, retomada no artigo 4.°, n.° 3, do Regulamento Roma I.
18 – V. artigo 4.°, n.° 8, segundo parágrafo, do relatório Giuliano Lagarde. V., também, o seu artigo 3.°, n.° 4.
19 – Lagarde, P., «Le nouveau droit international privé des contrats après l’entrée en vigueur de la Convention de Rome du 19 juin 1980», RC Dip, 80(2), Abril‑Junho 1991, p. 287.
20 – Mayer, P., e Heuzé, V., Droit international privé, 9.a edição, Montchrestien, Paris, 2007, n.° 710.
21 – V. artigo 4.°, n.° 8, quarto parágrafo, do relatório Giuliano Lagarde.
22 – V. artigo 3.°, n.° 4, primeiro parágrafo, do relatório Giuliano Lagarde.
23 – Acórdão de 28 de Julho de 1998, The Governor and Company of Bank of Scotland of the Mound v. Butcher ([1998] EWCA Civ 1306). V., também, acórdãos da High Court of Justice (England & Wales), de 6 de Novembro de 2001, CGU International Insurance plc v. Szabo & Ors. [(2002) 1 All ER (Comm) 83], e de 4 de Março de 2003, American Motorists Insurance Co (Amico) v. Cellstar Corp & Anor ([2003] EWCA Civ 206, n.° 33).
24 – Acórdão do Bundesgerichtshof de 7 de Maio de 1969 (VIII ZR 142/68, DB 1969, 1053).