Processo C‑222/15
Hőszig kft
contra
Alstom Power Thermal Services
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Pécsi Törvényszék (Tribunal de Pécs, Hungria)]
«Espaço de liberdade, segurança e justiça – Competência em matéria civil e comercial – Regulamento (CE) n.° 44/2001 – Artigo 23.°, n.° 1 – Extensão de competência – Pacto atributivo de jurisdição aos tribunais de determinada cidade de um Estado‑Membro – Cláusulas contratuais gerais»
Sumário do acórdão
O artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula atributiva de jurisdição, como a que está em causa no processo principal, que, por um lado, está estipulada nas cláusulas contratuais gerais do comitente, mencionadas nos instrumentos que constituem os contratos entre as partes e que foram comunicadas quando da sua celebração, e, por outro, designa como órgãos jurisdicionais competentes os tribunais de uma cidade de um Estado‑Membro, cumpre os requisitos desta disposição relativos ao consentimento das partes e à precisão do conteúdo dessa cláusula.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)
7 de julho de 2016 (*)
«Reenvio prejudicial – Cláusula atributiva de jurisdição – Cooperação judiciária em matéria civil – Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial – Regulamento (CE) n.° 44/2001 – Artigo 23.° – Cláusula inserida nas cláusulas contratuais gerais – Aceitação pelas partes das referidas cláusulas contratuais – Validade e precisão dessa cláusula»
No processo C‑222/15,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Pécsi Törvényszék (Tribunal de Pécs, Hungria), por decisão de 4 de maio de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de maio de 2015, no processo
Hőszig Kft.
contra
Alstom Power Thermal Services,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),
composto por: M. Ilešič, presidente de secção, C. Toader (relatora), A. Rosas, A. Prechal e E. Jarašiūnas, juízes,
advogado‑geral: M. Szpunar,
secretário: V. Tourrès, administrador,
vistos os autos e após a audiência de 21 de janeiro de 2016,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da Alstom Power Thermal Services, por S. M. Békési, ügyvéd,
– em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e G. Koós, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão Europeia, por A. Tokár e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de abril de 2016,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008, L 177, p. 6), e do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1, a seguir «Regulamento Bruxelas I»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Hőszig Kft. à Alstom Power Thermal Services (a seguir «Alstom»), que sucedeu à Technos et Compagnie (a seguir «Technos»), a propósito da execução de contratos celebrados entre as partes, relativamente aos quais se contesta, nos termos da cláusula atributiva de jurisdição, que o órgão jurisdicional de reenvio seja competente para conhecer do referido litígio.
Quadro jurídico
Regulamento Roma I
3 O artigo 1.° do Regulamento Roma I define o respetivo âmbito de aplicação material. O n.° 2 desse artigo prevê que determinadas matérias estão excluídas desse âmbito de aplicação, nomeadamente, nos termos da alínea e) desse número, as «convenções de arbitragem e de eleição do foro».
4 O artigo 3.°, n.° 1, deste regulamento dispõe:
«O contrato rege‑se pela lei escolhida pelas partes. A escolha deve ser expressa ou resultar de forma clara das disposições do contrato, ou das circunstâncias do caso. Mediante a sua escolha, as partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a parte do contrato».
5 O artigo 4.°, n.° 1, do referido regulamento prevê:
«Na falta de escolha nos termos do artigo 3.° e sem prejuízo dos artigos 5.° a 8.°, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo:
[…]b) O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual;
[…]»6 Sob a epígrafe «Aceitação e validade substancial», o artigo 10.° deste mesmo regulamento tem a seguinte redação:
«1. A existência e a validade substancial do contrato ou de alguma das suas disposições são reguladas pela lei que seria aplicável, por força do presente regulamento, se o contrato ou a disposição fossem válidos.
2. Todavia, um contraente, para demonstrar que não deu o seu acordo, pode invocar a lei do país em que tenha a sua residência habitual, se resultar das circunstâncias que não seria razoável determinar os efeitos do seu comportamento nos termos da lei designada no n.° 1.»
Regulamento Bruxelas I
7 Nos termos dos considerandos 11 e 14 do Regulamento Bruxelas I:
«(11) As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular‑se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, exceto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão. […] […]
(14) A autonomia das partes num contrato que não seja de seguro, de consumo ou de trabalho quanto à escolha do tribunal competente, no caso de apenas ser permitida uma autonomia mais limitada, deve ser respeitada sob reserva das competências exclusivas definidas pelo presente regulamento.»
8 O artigo 5.° deste regulamento dispõe:
«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:
1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
[…]»9 No capítulo II, intitulado «Competência», o artigo 23.° do referido regulamento, que figura na secção 7, intitulada «Extensão de competência», tem a seguinte redação:
«1. Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado‑Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:
a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou
b) Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou
c) No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.
2. Qualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à ‘forma escrita’.
[…]»Litígio no processo principal e questões prejudiciais
10 A Technos, uma pessoa coletiva com sede em França, quis participar em determinados trabalhos em várias centrais elétricas situadas em França. Para este efeito, convidou a Hőszig a fazer‑lhe várias propostas, com vista a participar nesses trabalhos, na qualidade de subcontratante. Assim, em 18 de agosto de 2009, a Technos enviou à Hőszig, por via eletrónica, uma lista das estruturas metálicas que esta seria, sendo caso disso, chamada a fabricar, dados relativos às condições técnicas e as cláusulas contratuais gerais da Technos (versão de dezembro de 2008) (a seguir «cláusulas contratuais gerais»).
11 Na sequência da proposta de preço apresentada pela Hőszig com base nestas informações, foram celebrados à distância, entre as partes, vários contratos relativos à preparação de estruturas metálicas a fabricar na Hungria destinadas a centrais elétricas. É facto assente que o primeiro desses contratos data de 16 de dezembro de 2010 (a seguir «primeiro contrato»).
12 As referidas partes celebraram vários contratos adicionais e acordaram alterações contratuais para efeitos da execução dos trabalhos. A lista intitulada «Documentação utilizada» do instrumento que constituía o primeiro contrato enumerava o seguinte:
«1) A presente nota de encomenda,
2) A especificação técnica com a referência T91000001/1200, C,
3) As cláusulas contratuais gerais da Technos (versão de dezembro de 2008),
Os documentos mencionados são aplicáveis por esta ordem.»
13 Na última página desse contrato, redigido em inglês, referia‑se igualmente que «[a] presente nota de encomenda enumera exaustivamente os documentos e informações mais importantes necessários à sua execução. Devem certificar‑se de que possuem esses documentos com a referência adequada, bem como os documentos por estes requeridos. Caso contrário, devem solicitar‑nos, por escrito, os documentos em falta».
14 Além disso, o último número do referido contrato previa, nomeadamente, que «o fornecedor declara conhecer e aceitar as condições da presente nota de encomenda, as cláusulas contratuais gerais em vigor, que se anexam, e as condições de eventuais acordos ou contratos‑quadro».
15 Nos termos do ponto 23.1 das cláusulas contratuais gerais:
«A nota de encomenda e a sua interpretação estão sujeitas à lei francesa. Não é aplicável a Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias de 11 de abril de 1980.
Qualquer litígio que surja ou se relacione com a validade, a restrição, a execução ou o cancelamento da nota de encomenda e que não seja objeto de resolução amigável entre as partes fica sob a jurisdição exclusiva e definitiva dos tribunais de Paris, incluindo os processos urgentes, as decisões de suspensão e as medidas cautelares.»
16 Na sequência de uma controvérsia jurídica surgida entre as partes acerca da execução dos contratos, a Hőszig intentou, em 31 de outubro de 2013, uma ação no órgão jurisdicional de reenvio, enquanto tribunal do lugar de execução das prestações acordadas.
17 Em apoio do seu recurso, a Hőszig invoca, em substância, que a escolha da lei francesa não foi claramente, por sua parte, um comportamento razoável no que diz respeito aos efeitos, na aceção do artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento Roma I, uma vez que os produtos por ela fabricados constituem o objeto dos contratos e o respetivo lugar de execução era o seu estabelecimento na Hungria, tendo decorrido nesse país a totalidade do processo de fabrico até à entrega ao cliente.
18 A Hőszig alega, assim, que a relação entre as cláusulas contratuais gerais e os diferentes contratos celebrados entre as partes deve ser analisada à luz do direito húngaro. Ora, baseando‑se nessa legislação, considera que as cláusulas contratuais gerais não fazem parte desses contratos. Por tal motivo, a designação da lei aplicável incluída nas cláusulas contratuais gerais não é pertinente, devendo aplicar‑se a lei húngara, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento Roma I.
19 Em seguida, no que diz respeito à competência judiciária, a Hőszig alega que não fazendo as cláusulas contratuais gerais parte do quadro contratual, essa competência devia ser atribuída às jurisdições húngaras, em aplicação do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento Bruxelas I.
20 Por último, a Hőszig alega que, mesmo que as cláusulas contratuais gerais façam parte dos contratos celebrados entre as partes, a cláusula atributiva de jurisdição incluída nessas cláusulas contratuais gerais não cumpre os requisitos do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I, já que remete para os «tribunais de Paris». Ora, não sendo a cidade de Paris (França) um Estado, essa expressão não designa um órgão jurisdicional específico, mas sim o conjunto das jurisdições que se encontram no território dessa cidade.
21 A Alstom deduziu uma exceção de incompetência do órgão jurisdicional de reenvio. Refere‑se, para este efeito, às cláusulas contratuais gerais que, em seu entender, fazem parte dos contratos. Por esse motivo, em virtude do disposto no ponto 23.1 das mesmas, o órgão jurisdicional de reenvio não tem competência para decidir do litígio no processo principal.
22 Segundo a Alstom, o artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento Roma I oferece à Hőszig a possibilidade de demonstrar que não deu o seu acordo ao contrato ou a alguma das suas disposições, invocando para esse efeito a lei do país em que tenha a sua residência habitual, ou seja, a Hungria, se resultar das circunstâncias que não seria razoável determinar a expressão do seu consentimento à luz da lei aplicável, em princípio, nos termos do referido regulamento. Ora, no caso em apreço, é totalmente razoável «determinar os efeitos do […] comportamento» da Hőszig, na aceção do artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento Roma I, à luz do direito francês, porque esta era subcontratante do adjudicatário do contrato público aberto em França com vista à realização de trabalhos numa central elétrica francesa.
23 Além disso, a cláusula atributiva de jurisdição que figura no ponto 23.1 das cláusulas contratuais gerais é totalmente compatível com o disposto no artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I, já que os tribunais da cidade de Paris são tribunais de um Estado‑Membro, em concreto, a República Francesa. A interpretação restritiva preconizada pela Hőszig não tem em conta o considerando 14 desse regulamento, nos termos do qual se deve respeitar a autonomia das partes num contrato.
24 O órgão jurisdicional de reenvio considera, no que diz respeito à exceção de incompetência deduzida pela Alstom, que importa saber se as cláusulas contratuais gerais fazem parte do quadro contratual acordado entre as partes. A este respeito, convém determinar a que «circunstâncias» há que atender, na aceção do artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento Roma I, para apreciar em que medida a Hőszig deu o seu consentimento à aplicabilidade das cláusulas contratuais gerais.
25 Se este órgão jurisdicional concluir, com base na lei do país onde a Hőszig tem a sua residência habitual, que as cláusulas contratuais gerais fazem parte do quadro contratual, então importa determinar se a cláusula atributiva de jurisdição contida no ponto 23.1 destas cláusulas contratuais gerais cumpre os requisitos estabelecidos no artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I.
26 Nestas condições, o Pécsi Törvényszék (Tribunal de Pécs, Hungria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) Relativamente ao [Regulamento Roma I]:
– Pode o tribunal de um Estado‑Membro interpretar a expressão ‘resultar das circunstâncias’, contida no artigo 10.°, n.° 2, do [Regulamento Roma I], no sentido de que a análise das ‘circunstâncias a tomar em consideração’ para efeitos de determinar se é razoável que não se tenha dado acordo, nos termos da lei do país em que o contraente tenha a sua residência habitual, se deve referir às circunstâncias da celebração, ao objeto e à execução do contrato?
– Devem os efeitos a que se refere o artigo 10.°, n.° 2, [do Regulamento Roma I] decorrentes da situação descrita no [primeiro travessão] ser interpretados no sentido de que quando, com base na designação [da lei do país de residência habitual] feita por um contraente, resultar das circunstâncias a tomar em consideração que a aceitação da lei aplicável nos termos do n.° 1 não era um efeito razoável do comportamento desse contraente o tribunal deve apreciar a existência e a validade da cláusula contratual nos termos da lei do país de residência habitual do contraente que a invocou?
– Pode o tribunal desse Estado‑Membro interpretar o disposto no artigo 10.°, n.° 2, do [Regulamento Roma I] no sentido de que o tribunal pode apreciar discricionariamente, tendo em conta o conjunto de circunstâncias que se verificam no caso, se, atendendo às circunstâncias a tomar em consideração, a aceitação da lei aplicável nos termos do artigo 10.°, n.° 1, não era um efeito razoável do comportamento do contraente?
– No caso de, nos termos do artigo 10.°, n.° 2, do [Regulamento Roma I], um contraente invocar a lei do país em que tenha a sua residência habitual para demonstrar que não deu o seu acordo, deve o tribunal de um Estado‑Membro tomar em consideração a lei do país de residência habitual desse contraente no sentido de que, por força da lei desse país, devido às referidas ‘circunstâncias’, a aceitação por esse contraente da lei designada no contrato não era um comportamento razoável?
– Nesse caso, é contrária ao direito [da União] a interpretação do tribunal de um Estado‑Membro nos termos da qual a análise das ‘circunstâncias’, para efeitos de determinar se é razoável que não se tenha dado acordo, se refere às circunstâncias da celebração, ao objeto e à execução do contrato?
2) Relativamente ao [Regulamento Bruxelas I]:
– É contrária ao disposto no artigo 23.°, n.° 1, do [Regulamento Bruxelas I] a interpretação do tribunal de um Estado‑Membro nos termos da qual é necessária a designação de um tribunal específico, ou, tendo em conta o estabelecido no considerando 14 do referido regulamento, é suficiente que da redação se deduza inequivocamente a vontade ou a intenção dos contraentes?
– É compatível com o disposto no artigo 23.°, n.° 1, do [Regulamento Bruxelas I] a interpretação do tribunal de um Estado‑Membro nos termos da qual uma cláusula atributiva de jurisdição, incluída nas cláusulas contratuais gerais de um dos contraentes, por força da qual as partes convencionaram que os litígios que surjam ou se relacionem com a validade, a execução ou o cancelamento da nota de encomenda e que não sejam objeto de resolução amigável entre as partes ficarão sob a jurisdição exclusiva e definitiva dos tribunais de uma cidade de um determinado Estado‑Membro, no caso concreto, os tribunais de Paris, é suficientemente precisa por se deduzir inequivocamente da sua redação, tendo em conta o estabelecido no considerando 14 do referido [regulamento], a vontade ou a intenção das partes no que respeita ao Estado‑Membro designado?»
Quanto às questões prejudiciais
Quanto à segunda questão
27 Com a sua segunda questão, que importa analisar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula atributiva de jurisdição, como a em causa no processo principal, que, por um lado, está estipulada nas cláusulas contratuais gerais do comitente, mencionadas nos instrumentos que constituem os contratos entre as partes e que foram comunicadas quando da sua celebração, e, por outro, designa como jurisdições competentes os tribunais de uma cidade de um Estado‑Membro, cumpre os requisitos desta disposição relativos ao consentimento das partes e à precisão do conteúdo dessa cláusula.
28 Há que recordar, desde logo, que, embora a interpretação de uma cláusula atributiva de jurisdição, a fim de determinar os diferendos abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, seja da competência do órgão jurisdicional nacional onde foi invocada (acórdão de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.° 67 e jurisprudência referida), a competência de um tribunal ou de tribunais de um Estado‑Membro convencionada pelos contraentes nessa cláusula é, segundo a redação do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I, em princípio, exclusiva (v., neste sentido, acórdão de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 24).
29 Seguidamente, tendo em conta os objetivos e a sistemática geral deste regulamento, e a fim de assegurar a aplicação uniforme deste instrumento, importa interpretar o conceito de «pacto atributivo de jurisdição» previsto no seu artigo 23.° não como uma simples remissão para o direito interno de um ou outro dos Estados em questão, mas como um conceito autónomo (acórdão de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp, C‑543/10, EU:C:2013:62, n.° 21 e jurisprudência referida).
30 Por último, na medida em que o Regulamento Bruxelas I substitui, nas relações entre os Estados‑Membros, a Convenção de 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pelas sucessivas Convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa Convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»), a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições desta Convenção é igualmente válida para as do regulamento, quando as disposições destes instrumentos possam ser qualificadas de equivalentes (acórdão de 23 de outubro de 2014, flyLAL‑Lithuanian Airlines, C‑302/13, EU:C:2014:2319, n.° 25 e jurisprudência referida).
31 Quanto ao artigo 17.°, primeiro parágrafo, da referida Convenção, ao qual sucedeu o artigo 23.° do Regulamento Bruxelas I, o Tribunal de Justiça declarou que uma cláusula atributiva de jurisdição, que obedece a uma finalidade processual, rege‑se pelas disposições da Convenção, cujo objetivo é a criação de regras uniformes em matéria de competência jurisdicional internacional (acórdão de 3 de julho de 1997, Benincasa, C‑269/95, EU:C:1997:337, n.° 25).
32 O Tribunal de Justiça também já teve ocasião de esclarecer que esta disposição tem por objetivo prever ela própria os requisitos de forma que devem revestir as cláusulas atributivas de jurisdição, e isto para garantir a segurança jurídica e para assegurar o acordo das partes (v., neste sentido, acórdão de 16 de março de 1999, Castelletti, C‑159/97, EU:C:1999:142, n.° 34 e jurisprudência referida).
33 Quanto aos requisitos estabelecidos pelo artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I, importa recordar que esta disposição prevê essencialmente requisitos de forma e menciona um requisito material relativamente ao objeto dessa cláusula, a qual deve incidir sobre uma relação jurídica específica (v., neste sentido, acórdão de 20 de abril de 2016, Profit Investment SIM, C‑366/13, EU:C:2016:282, n.° 23 e jurisprudência referida).
34 No caso em apreço, o requisito material encontra‑se cumprido, uma vez que resulta da decisão de reenvio que as partes no processo principal estão vinculadas por diversos contratos.
35 No que diz respeito aos requisitos de forma, há que recordar, por um lado, que, segundo a redação do referido artigo 23.°, n.° 1, para ser válido, um pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado quer por escrito, quer verbalmente com confirmação escrita, quer ainda em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si ou, no comércio internacional, com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer. Por força do n.° 2 desse artigo, «[q]ualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto» deve ser considerada equivalente à «forma escrita» (v., neste sentido, acórdão de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 24).
36 Por outro lado, a existência de consenso dos interessados é um dos objetivos do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I (v., neste sentido, acórdão de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 30 e jurisprudência referida). Isso justifica‑se pela preocupação de proteger a parte contratante mais fraca, evitando que cláusulas atributivas de jurisdição, introduzidas num contrato por uma única das partes, passem despercebidas (v., neste sentido, acórdão de 16 de março de 1999, Castelletti, C‑159/97, EU:C:1999:142, n.° 19 e jurisprudência referida).
37 O juiz chamado a pronunciar‑se tem a obrigação de analisar, in limine litis, se a cláusula atributiva de jurisdição foi efetivamente objeto de consenso entre as partes, que deve manifestar‑se de forma clara e precisa, sendo que as exigências de forma estabelecidas pelo artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I têm por função, a este título, assegurar que o consentimento seja efetivamente provado (acórdãos de 6 de maio de 1980, Porta‑Leasing, 784/79, EU:C:1980:123, n.° 5 e jurisprudência referida, e de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 29 e jurisprudência referida).
38 Assim, como sublinhou o advogado‑geral nos n.os 33 e 34 das suas conclusões, resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de um «pacto» entre as partes na aceção do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I pode ser extraída do facto de os requisitos formais estabelecidos no artigo 23.°, n.° 1, deste regulamento terem sido cumpridos.
39 No caso de uma situação como a em causa no processo principal, na qual uma cláusula atributiva de jurisdição está estipulada nas cláusulas contratuais gerais, o Tribunal de Justiça já declarou que essa cláusula era lícita, no caso de o próprio texto do contrato assinado por ambas as partes remeter expressamente para cláusulas contratuais gerais que incluem a referida cláusula (v., neste sentido, acórdãos de 16 de março de 1999, Castelletti, C‑159/97, EU:C:1999:142, n.° 13, e de 20 de abril de 2016, Profit Investment SIM, C‑366/13, EU:C:2016:282, n.° 26 e jurisprudência referida).
40 No entanto, esta apreciação só é válida no caso de a remissão ser explícita, suscetível de ser controlada por uma parte normalmente diligente e se se demonstrar que as cláusulas contratuais gerais que incluem a cláusula atributiva de jurisdição foram efetivamente comunicadas à outra parte contratante (v., neste sentido, acórdão de 14 de dezembro de 1976, Estasis Saloti di Colzani, 24/76, EU:C:1976:177, n.° 12).
41 No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a cláusula atributiva de jurisdição foi estipulada nas cláusulas contratuais gerais da Technos, elas próprias mencionadas nos instrumentos que constituem os contratos entre as partes e que foram comunicadas quando da sua celebração.
42 Por conseguinte, decorre do exposto que uma cláusula atributiva de jurisdição, como a em causa no processo principal, cumpre os requisitos estabelecidos pelo artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I.
43 No que diz respeito à precisão do conteúdo de uma cláusula atributiva de jurisdição, quando se trata de determinar o tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro para conhecer dos litígios surgidos ou que venham a surgir entre as partes, o Tribunal de Justiça já declarou, quanto ao artigo 17.° da Convenção de Bruxelas, que os termos desta disposição não podem ser interpretados no sentido de que exigem que uma cláusula desta natureza seja formulada de tal forma que seja possível identificar o órgão jurisdicional competente apenas através do seu teor. Com efeito, basta que a cláusula identifique os elementos objetivos sobre os quais as partes se puseram de acordo para escolher o tribunal ou os tribunais aos quais pretendem submeter os seus litígios surgidos ou que venham a surgir. Estes elementos, que devem ser suficientemente precisos para permitir ao tribunal chamado a decidir determinar a sua competência, podem ser concretizados, eventualmente, através das circunstâncias próprias à situação do caso concreto (acórdão de 9 de novembro de 2000, Coreck, C‑387/98, EU:C:2000:606, n.° 15).
44 Essa interpretação, inspirada na prática corrente da vida empresarial, justifica‑se pela circunstância de o artigo 23.° do Regulamento Bruxelas I se basear, como o confirmam os considerandos 11 e 14, no reconhecimento da autonomia das partes em matéria de atribuição de competência aos órgãos jurisdicionais chamados a conhecer dos litígios abrangidos pelo âmbito de aplicação deste regulamento (v., neste sentido, acórdãos de 9 de novembro de 1978, Meeth, 23/78, EU:C:1978:198, n.° 5, e de 21 de maio de 2015, El Majdoub, C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 26).
45 No caso em apreço, segundo as constatações do órgão jurisdicional de reenvio, nos termos da cláusula atributiva de jurisdição em causa no processo principal, qualquer litígio que surja entre as partes «fica sob a jurisdição exclusiva e definitiva dos tribunais de Paris».
46 Assim, embora esta cláusula não designe expressamente o Estado‑Membro cujos órgãos jurisdicionais as partes convencionaram ser competentes, os órgãos jurisdicionais visados são os da capital de um Estado‑Membro, o qual, neste caso, é igualmente aquele cuja lei foi designada pelas partes como aplicável ao contrato, de modo que não restam dúvidas de que a referida cláusula, contida num contrato como o em causa no processo principal, pretende conferir uma competência exclusiva aos órgãos jurisdicionais do sistema judicial específico deste Estado‑Membro.
47 Por conseguinte, resulta das circunstâncias específicas da situação concreta, conforme constatadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que uma cláusula atributiva de jurisdição, como a em causa no processo principal, cumpre os requisitos de precisão, recordados no n.° 43 do presente acórdão.
48 Por outro lado, conforme sublinhou o advogado‑geral no n.° 44 das suas conclusões, importa salientar que uma cláusula atributiva de jurisdição que visa «os tribunais» de uma cidade de um Estado‑Membro remete, implícita, mas necessariamente, para efeitos de determinação exata do órgão jurisdicional perante o qual a ação deve ser proposta, para o sistema de regras de competência em vigor no referido Estado‑Membro.
49 Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula atributiva de jurisdição, como a que está em causa no processo principal, que, por um lado, está estipulada nas cláusulas contratuais gerais do comitente, mencionadas nos instrumentos que constituem os contratos entre as partes e que foram comunicadas quando da sua celebração, e, por outro, designa como órgãos jurisdicionais competentes os tribunais de uma cidade de um Estado‑Membro, cumpre os requisitos desta disposição relativos ao consentimento das partes e à precisão do conteúdo dessa cláusula.
Quanto à primeira questão
50 Nos termos do seu artigo 1.°, n.° 2, alínea e), o Regulamento Roma I não é aplicável às cláusulas atributivas de jurisdição.
51 Além disso, conforme resulta da resposta à segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio é incompetente para conhecer do litígio no processo principal. Esse órgão jurisdicional não tem, portanto, que decidir sobre a validade, que a Hőszig também contesta ao invocar o artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento Roma I, da cláusula nos termos da qual a lei francesa se aplica aos contratos em causa.
52 Por conseguinte, não há que responder à primeira questão.
Quanto às despesas
53 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:
O artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula atributiva de jurisdição, como a que está em causa no processo principal, que, por um lado, está estipulada nas cláusulas contratuais gerais do comitente, mencionadas nos instrumentos que constituem os contratos entre as partes e que foram comunicadas quando da sua celebração, e, por outro, designa como órgãos jurisdicionais competentes os tribunais de uma cidade de um Estado‑Membro, cumpre os requisitos desta disposição relativos ao consentimento das partes e à precisão do conteúdo dessa cláusula.
Assinaturas
* Língua do processo: húngaro.
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
MACIEJ SZPUNAR
apresentadas em 7 de abril de 2016 (1)
Processo C‑222/15
Hőszig kft
contra
Alstom Power Thermal Services
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Pécsi Törvényszék (Tribunal de Pécs, Hungria)]
«Espaço de liberdade, segurança e justiça – Competência em matéria civil e comercial – Regulamento (CE) n.° 44/2001 – Artigo 23.°, n.° 1 – Extensão de competência – Pacto atributivo de jurisdição aos tribunais de determinada cidade de um Estado‑Membro – Cláusulas contratuais gerais»
1. O presente caso, que respeita a uma ação cível entre duas empresas e que suscita determinadas questões relativas ao conceito de «pacto atributivo de jurisdição», na aceção do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 (2), permitirá ao Tribunal de Justiça abordar alguns temas fundamentais em matéria de extensão de competência ao abrigo daquele regulamento.
Quadro jurídico
2. O artigo 1.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 593/2008 (3), com a epígrafe «Âmbito de aplicação material», dispõe o seguinte:
«2. São excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento:
[…]e) As convenções de arbitragem e de eleição do foro;
[…]»3. O capítulo II do Regulamento n.° 44/2001 tem a epígrafe «Competência». A secção 7 desse capítulo, com a epígrafe «Extensão de competência», compreende os artigos 23.° e 24.° O artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 estabelece o seguinte:
«Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado‑Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:
a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou
b) Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou
c) No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.»
Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais
4. A Hőszig, demandante no processo principal, é uma pessoa coletiva com sede na Hungria, ao passo que a antecessora jurídica da Alstom Power Thermal Services (a demandada) (4) é uma pessoa coletiva com sede em França. A antecessora jurídica da Alstom pretendia investir em centrais elétricas já existentes e situadas em França, no quadro de um programa de investimento em grande escala.
5. A antecessora jurídica da Alstom endereçou à Hőszig, entre outras, um convite para a apresentação de uma proposta, cujo caderno de encargos incluía: uma lista dos componentes a fabricar, que constituíam o objeto do contrato; uma descrição dos requisitos técnicos exigidos para esse efeito; e as cláusulas contratuais gerais da antecessora jurídica da demandada, que estavam em vigor em dezembro de 2008. A antecessora jurídica da Alstom enviou o referido caderno de encargos à Hőszig por correio eletrónico em 18 de agosto de 2009.
6. A Hőszig apresentou uma proposta de execução do projeto, na sequência da qual as partes celebraram entre si diversos contratos para a produção de estruturas metálicas a fabricar na Hungria e a instalar em centrais elétricas situadas em França. As partes celebraram à distância os contratos relativos ao projeto.
7. O primeiro dos contratos, celebrado em 16 de dezembro de 2010, continha a seguinte lista, sob a epígrafe «Documentação utilizada»:
«1) A presente nota de encomenda;
2) A especificação técnica com a referência T91000001 / 1200 rev. C;
3) As cláusulas contratuais gerais da [antecessora jurídica da Alstom] (dezembro de 2008).
Os documentos são aplicáveis por esta ordem.»
8. Na última página do contrato, afirmava‑se que «a nota de encomenda enumera exaustivamente os documentos e informações mais importantes necessários à sua execução. Os contratantes devem certificar‑se de que possuem os documentos com a referência adequada, bem como os documentos adicionais exigidos pelos primeiros. Caso contrário, devem solicitar‑nos, por escrito, os documentos em falta».
9. A última cláusula do contrato estipulava que «o fornecedor declara conhecer e aceitar as condições da presente nota de encomenda, as cláusulas contratuais gerais vigentes, em anexo, e as condições de eventuais acordos ou contratos‑quadro».
10. Nos termos da cláusula 23.1 das «cláusulas contratuais gerais», sob a epígrafe «Lei aplicável e resolução de litígios», era estipulado o seguinte: «[a] nota de encomenda e a sua interpretação estão sujeitas ao direito francês. A Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, de 11 de abril de 1980, não é aplicável. Qualquer litígio decorrente da validade, da interpretação, da execução ou do cancelamento da nota de encomenda, ou com esta relacionado, e que não seja objeto de resolução amigável entre as partes fica sob a jurisdição exclusiva e definitiva dos tribunais de Paris, incluindo os processos sumários, as ações inibitórias e as medidas cautelares».
11. Na sequência de um conflito entre as partes acerca da execução dos contratos, a Hőszig instaurou um processo judicial no Pécsi Törvényszék (Tribunal de Pécs), o órgão jurisdicional competente segundo o lugar do cumprimento.
12. De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, a demandante invoca o disposto no artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento n.° 593/2008, referente à «aceitação e validade substancial» do contrato, e sustenta que não seria razoável determinar os efeitos do seu comportamento nos termos do direito francês, uma vez que o objeto do contrato é o produto fabricado pela demandante e o lugar de cumprimento, tal como o lugar de fabrico, é o estabelecimento da demandante na Hungria, donde resulta que a totalidade do processo de fabrico, até à entrega à parte que fez a encomenda, teve lugar nesse país.
13. Assim, a demandante alega que, dada a referência à interpretação de acordo com o direito húngaro, a relação entre as «cláusulas contratuais gerais» e os contratos deve ser analisada à luz desse direito.
14. A demandante argumenta que, nos termos do disposto nos artigos 205/A e 205/B do Código Civil húngaro, relativos à incorporação das cláusulas contratuais gerais nos contratos, as «cláusulas contratuais gerais» da antecessora jurídica da demandada não podem fazer parte dos contratos celebrados entre as partes.
15. Por esse motivo, na opinião da demandante, a cláusula referente ao direito aplicável incluída nas «cláusulas contratuais gerais» da antecessora jurídica da demandada não é pertinente, devendo aplicar‑se, nessa matéria, o artigo 4.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 593/2008, nos termos do qual o contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços, ou seja, a demandante, tem a sua residência habitual.
16. No que se refere à competência do órgão jurisdicional húngaro, a demandante considera que as «cláusulas contratuais gerais» da antecessora jurídica da demandada não fazem parte dos contratos pelas razões expostas, pelo que a competência deve ser determinada de acordo com o disposto no artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 44/2001, segundo o qual deve conhecer do processo o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação, ou seja, o Pécsi Törvényszék.
17. Subsidiariamente, a demandante alega que, caso o Tribunal de Justiça conclua que as «cláusulas contratuais gerais» da antecessora jurídica da demandada fazem parte dos contratos, a cláusula atributiva de jurisdição incluída nessas cláusulas contratuais gerais também não satisfaz as exigências do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, já que remete para os «tribunais de Paris». Ora, por um lado, Paris não é um Estado‑Membro mas sim uma cidade, e, por outro, os «tribunais de Paris» não designam um tribunal específico mas sim o conjunto dos tribunais que se encontram dentro dos limites administrativos dessa cidade.
18. O órgão jurisdicional de reenvio explica ainda que a demandada alega a incompetência do Pécsi Törvényszék, invocando a cláusula 23 das «cláusulas contratuais gerais» da antecessora jurídica da demandante, relativa aos «bens e serviços», que rege as matérias da lei aplicável e da resolução de litígios.
19. Segundo a demandada, as «cláusulas contratuais gerais» fazem parte dos contratos e, por esse motivo, ao abrigo da sua cláusula 23, o órgão jurisdicional húngaro não possui competência para apreciar os litígios emergentes dos contratos. Por conseguinte, a demandada afirma que a demandante não instaurou a ação no tribunal competente para conhecer do presente caso.
20. No entender da demandada, o artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento n.° 593/2008 permite avaliar a razoabilidade da aplicação do direito francês à questão da aceitação.
21. A demandada considera que, em virtude do disposto nos artigos 3.°, n.° 1, e 10.°, n.° 1, do Regulamento n.° 593/2008, e tendo em conta as circunstâncias, é absolutamente razoável escolher o direito francês como direito aplicável à determinação dos efeitos do comportamento da demandante pelos seguintes motivos: a antecessora jurídica da demandada era subcontratante da adjudicatária num processo de contratação pública aberto em França e que tinha por objeto um investimento considerável em centrais elétricas francesas; o direito francês é a lei pessoal da demandada; e a demandada e a demandante estavam vinculadas, no que respeita aos trabalhos objeto do referido contrato público, por uma relação contratual de grande alcance, composta por vários instrumentos contratuais, que visava o fabrico de estruturas metálicas. Em consequência, pelas razões expostas, a demandada afirma que a designação da lei pessoal de uma das partes, a compradora, é perfeitamente razoável e compatível com as práticas de mercado, em especial nos casos em que o objeto do contrato de compra e venda será utilizado no país dessa parte compradora, num mercado extremamente regulamentado; nessa conformidade, é razoável aplicar o direito francês para apreciar o comportamento da demandante.
22. Segundo a demandada, a cláusula atributiva de jurisdição estabelecida na cláusula 23 das «cláusulas contratuais gerais» é totalmente compatível com o disposto no artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, já que os tribunais da cidade de Paris são tribunais de um Estado‑Membro (França). O facto de os tribunais de Paris não constituírem a totalidade dos tribunais franceses não determina a invalidade da cláusula atributiva de jurisdição. A demandada considera que a interpretação restritiva proposta pela demandante não tem em conta o considerando 14 do Regulamento n.° 44/2001, segundo o qual a autonomia das partes num contrato deve ser respeitada.
23. Foi no contexto deste processo que, por despacho de 4 de maio de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de maio de 2015, o Pécsi Törvényszék (Tribunal de Pécs) apresentou as seguintes questões prejudiciais:
«I) Relativamente ao Regulamento [n.° 593/2008]:
1) Pode o tribunal de um Estado‑Membro interpretar a expressão ‘resultar das circunstâncias’, contida no artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento n.° 593/2008, no sentido de que a análise das ‘circunstâncias a tomar em consideração’ para efeitos de determinar se é razoável que não se tenha dado acordo, nos termos da lei do país em que o contraente tenha a sua residência habitual, se deve referir às circunstâncias da celebração, ao objeto e à execução do contrato?
1.1) Devem os efeitos a que se refere o artigo 10.°, n.° 2, decorrentes da situação descrita no anterior ponto 1, ser interpretados no sentido de que quando, com base na designação [da lei do país de residência habitual] feita por um contraente, resultar das circunstâncias a tomar em consideração que a aceitação da lei aplicável nos termos do n.° 1 não era um efeito razoável do comportamento desse contraente, o tribunal deve apreciar a existência e a validade da cláusula contratual nos termos da lei do país de residência habitual do contraente que a invocou?
2) Pode o tribunal desse Estado‑Membro interpretar o disposto no artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento n.° 593/2008 no sentido de que o tribunal pode apreciar discricionariamente, tendo em conta o conjunto de circunstâncias que se verificam no caso, se, atendendo às circunstâncias a tomar em consideração, a aceitação da lei aplicável nos termos do artigo 10.°, n.° 1, não era um efeito razoável do comportamento do contraente?
3) No caso de, nos termos do artigo 10.°, n.° 2, do Regulamento n.° 593/2008, um contraente invocar a lei do país em que tenha a sua residência habitual para demonstrar que não deu o seu acordo, deve o tribunal de um Estado‑Membro tomar em consideração a lei do país de residência habitual desse contraente no sentido de que, por força da lei desse país, devido às referidas ‘circunstâncias’, a aceitação por esse contraente da lei designada no contrato não era um comportamento razoável?
3.1) Nesse caso, é contrária ao direito comunitário a interpretação do tribunal de um Estado‑Membro nos termos da qual a análise das ‘circunstâncias’, para efeitos de determinar se é razoável que não se tenha dado acordo, se refere às circunstâncias da celebração, ao objeto e à execução do contrato?
II) Relativamente ao Regulamento [n.° 44/2001]:
1) É contrária ao disposto no artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 a interpretação do tribunal de um Estado‑Membro nos termos da qual é necessária a designação de um tribunal específico, ou, tendo em conta o estabelecido no considerando 14 do referido regulamento, é suficiente que da redação se deduza inequivocamente a vontade ou a intenção dos contraentes?
1.1) É compatível com o disposto no artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 a interpretação do tribunal de um Estado‑Membro nos termos da qual uma cláusula atributiva de jurisdição, incluída nas cláusula contratuais gerais de um dos contraentes, por força da qual as partes convencionaram que os litígios que surjam ou se relacionem com a validade, a execução ou o cancelamento da nota de encomenda e que não sejam objeto de resolução amigável entre as partes ficarão sob a jurisdição exclusiva e definitiva dos tribunais de uma cidade de um determinado Estado‑Membro, no caso concreto, os tribunais de Paris, é suficientemente precisa por se deduzir inequivocamente da sua redação, tendo em conta o estabelecido no considerando 14 do referido Regulamento, a vontade ou a intenção das partes no que respeita ao Estado‑Membro designado?»
24. Foram apresentadas observações escritas pela Alstom, pelo Governo húngaro e pela Comissão Europeia. Os dois últimos apresentaram também alegações orais na audiência que teve lugar em 21 de janeiro de 2016.
Análise
Observações preliminares
25. O órgão jurisdicional de reenvio pretende apurar se é competente para conhecer do litígio sobre o qual foi chamado a pronunciar‑se. Para esse efeito, submete ao Tribunal de Justiça duas questões prejudiciais. A primeira questão respeita à interpretação do artigo 10.° do Regulamento n.° 593/2008, ao passo que, na segunda, são pedidas orientações sobre a interpretação do artigo 23.° do Regulamento n.° 44/2001.
26. O artigo 1.°, n.° 2, alínea e), do Regulamento n.° 593/2008 exclui expressamente do seu âmbito de aplicação as «convenções […] de eleição do foro». Por conseguinte, este regulamento não pode ser relevante para a determinação da competência.
27. No fundo, o que o órgão jurisdicional reenvio pretende saber é se o artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 se opõe a uma cláusula atributiva de jurisdição, incluída nas cláusulas contratuais gerais de um dos contraentes, por força da qual estes convencionam que os litígios que os venham a opor ficarão sob a jurisdição exclusiva e definitiva dos tribunais de uma cidade ou localidade específica de um Estado‑Membro – neste caso, a cidade de Paris. É a esta questão que proponho que o Tribunal de Justiça responda.
28. Nas presentes conclusões, referirei frequentemente a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a Convenção relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, de 27 de setembro de 1968 (5) (a seguir «Convenção de Bruxelas»), porque, uma vez que o Regulamento n.° 44/2001 substitui a Convenção de Bruxelas, a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições dessa Convenção é válida igualmente para as do referido regulamento, quando as disposições desses instrumentos possam ser qualificadas de equivalentes (6). Concretamente, o Tribunal de Justiça já afirmou expressamente ser esse o caso do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas e do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, que têm uma redação quase idêntica (7).
29. Os pactos atributivos de jurisdição revestem enorme importância no contencioso internacional (8). O artigo 23.°, que tem sido acertadamente descrito como uma das mais importantes disposições do Regulamento n.° 44/2001 (9), visa concretizar a autonomia das partes no seio do sistema instituído por este regulamento (10). O seu objetivo é garantir a segurança jurídica através da possibilidade de prever com certeza o foro competente (11). Os pactos atributivos de jurisdição têm por efeito excluir a competência determinada, em especial, pelos artigos 2.° e 5.° do Regulamento n.° 44/2001 (12). Por conseguinte, é possível assumir com segurança que o artigo 23.° do Regulamento n.° 44/2001 «prevalece» (13) sobre as restantes disposições do regulamento relativas à competência.
30. O artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 trata apenas da extensão da competência e não das disposições materiais dos contratos. Consequentemente, o Tribunal de Justiça sustentou no acórdão Benincasa que «um pacto atributivo de jurisdição, que obedece a uma finalidade processual, rege‑se pelas disposições da Convenção, cujo objetivo é a criação de regras uniformes em matéria de competência jurisdicional internacional. Em contrapartida, as disposições materiais do contrato principal, em que se inscreve o pacto, bem como qualquer contestação no que respeita à sua validade rege‑se pela lex causae que é determinada pelo direito internacional privado do Estado do foro» (14). Portanto, um pacto atributivo de jurisdição é independente do destino do contrato celebrado pelas partes (15).
31. Além disso, desde a prolação do acórdão Powell Duffryn, o Tribunal de Justiça tem sustentado que importa interpretar o conceito de «pacto atributivo de jurisdição», na aceção do artigo 23.° do Regulamento n.° 44/2001, não como uma simples remissão para o direito interno de um ou outro dos Estados em questão, mas como um conceito autónomo (16).
32. É também jurisprudência assente que o artigo 23.°, n.° 1, deve ser interpretado no sentido de que a escolha do tribunal designado numa cláusula atributiva de jurisdição só pode ser apreciada à luz de considerações ligadas às exigências estabelecidas por este artigo. São estranhas a estas exigências quaisquer considerações relativas aos elementos de conexão entre o tribunal designado e a relação controvertida, ao mérito da cláusula e às normas substantivas em matéria de responsabilidade aplicáveis no tribunal escolhido (17).
33. O Tribunal de Justiça decidiu que, ao subordinar a validade de uma cláusula atributiva de jurisdição à existência de uma «convenção» entre as partes, essa disposição impõe ao órgão jurisdicional a obrigação de averiguar, em primeiro lugar, se a cláusula que lhe atribui competência foi efetivamente objeto de consenso entre as partes, que deve manifestar‑se de forma clara e precisa, e se as exigências de forma estabelecidas pelo artigo 23.° têm por função assegurar que o consentimento esteja efetivamente provado (18).
34. Por outras palavras, o Tribunal de Justiça considera que a existência de uma convenção pode ser extraída do facto de os requisitos formais estabelecidos no artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 terem sido cumpridos.
35. É evidente que um contrato, tendo especialmente em conta a questão do consenso, é, por natureza, composto por elementos subjetivos que excedem os requisitos puramente formais, o que conduz à questão de saber em que medida esses elementos subjetivos são regidos pelo artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 e se (ou melhor, até que ponto) esta disposição permite que seja designada a lei nacional quando estão em causa todos os outros elementos de um contrato, tais como a capacidade, os vícios do consentimento (19), etc. (20). Portanto, a linha de demarcação entre os elementos específicos que estão e que não estão abrangidos pelo artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 não é ainda totalmente clara (21).
36. Feitas estas considerações, no meu entender, o caso presente pode ser resolvido com base na jurisprudência existente, não se prestando à discussão geral sobre esta linha de demarcação.
37. Evidentemente, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se a cláusula atributiva de jurisdição foi efetivamente objeto de consenso entre as partes. Com base nas considerações tecidas nos n.os 28 a 33 das presentes conclusões e nas informações de que disponho, inclino‑me para que assim seja.
Consenso
38. Para determinar se existiu entre as partes um consenso manifestado de forma clara e precisa, como exige a jurisprudência do Tribunal de Justiça acima mencionada, há que verificar se os requisitos formais do artigo 23.°, n.° 1, foram satisfeitos.
39. Dois aspetos merecem uma análise mais aprofundada: saber se foi observada a forma escrita exigida pelo artigo 23.°, n.° 1, alínea a), e, em caso afirmativo, saber se a expressão «tribunais de Paris» é suficientemente precisa.
40. Entendo que a ambas as questões deve ser dada resposta afirmativa.
41. O Tribunal de Justiça sustentou que «a exigência de forma escrita prevista no primeiro parágrafo do artigo 17.° da convenção só é satisfeita, no caso de um pacto atributivo de jurisdição inserido nas condições gerais de venda estipuladas por uma das partes e impressas no verso de um contrato, quando o contrato assinado por ambas as partes remeter expressamente (22) para essas condições gerais» (23).
42. A cláusula 23 das cláusulas contratuais gerais da antecessora jurídica da Alstom, às quais o contrato fazia expressa referência, estabelece clara e inequivocamente que serão competentes os tribunais de Paris.
43. Relativamente à questão de saber se a expressão «tribunais de Paris» é suficientemente precisa, também se me afigura que assim seja. O Tribunal de Justiça sustentou que o artigo 17.° da Convenção de Bruxelas não pode ser interpretado no sentido de que a cláusula atributiva de jurisdição tenha de ser formulada de modo a permitir que o tribunal competente seja determinado exclusivamente de acordo com o seu teor. Basta que a cláusula identifique os elementos objetivos com base nos quais as partes acordaram escolher o tribunal ou os tribunais aos quais pretendem submeter os litígios que tiverem surgido ou que venham a surgir entre elas. Estes elementos, que devem ser suficientemente precisos para permitir ao órgão jurisdicional nacional chamado a decidir determinar a sua competência, podem ser concretizados, eventualmente, através das circunstâncias do caso concreto (24). Além disso, no que respeita ao argumento de que existem em Paris vários tribunais potencialmente competentes para apreciar matérias como as do presente caso, o Tribunal de Justiça decidiu no acórdão Meeth (25) que o artigo 17.° da Convenção de Bruxelas não pode ser interpretado no sentido de excluir o direito das partes de designarem por acordo dois ou mais tribunais para a resolução de eventuais litígios (26).
44. Mantém‑se a questão de saber qual a lei que determinará qual o tribunal de Paris competente. Neste ponto, gostaria de referir as conclusões do advogado‑geral F. Capotorti no processo Meeth, que afirmou, a propósito de uma cláusula atributiva de jurisdição aos tribunais de determinado país: «[p]arece‑me evidente que uma cláusula assim redigida remete implicitamente, quanto à determinação exata do juiz perante o qual a ação deve ser intentada, para o sistema das regras de competência territorial, em razão do valor e da matéria, que estão em vigor no Estado indicado» (27). No acórdão que proferiu naquele processo (28), o Tribunal de Justiça pareceu aceitar este entendimento, não tecendo mais considerações sobre esta matéria. No meu entender, o mesmo raciocínio aplica‑se no caso presente. A determinação do tribunal de Paris que é especificamente competente é regulada pelo direito processual francês (29).
Regulamento (UE) n.° 1215/2012 e Convenção da Haia de 2005
45. Como é sobejamente conhecido, o Regulamento n.° 44/2001 foi substituído pelo Regulamento (UE) n.° 1215/2012 (30). Nos termos das disposições transitórias estabelecidas no seu artigo 66.°, este último regulamento não se aplica ao caso em apreço (31). No entanto, uma vez que um dos objetivos principais da reformulação foi reforçar a eficácia dos acordos de eleição do foro competente, respeitando a regra geral de litispendência (32), proponho‑me abordar sucintamente o novo texto.
46. O artigo 25.° do Regulamento n.° 1215/2012 estabelece agora que «[s]e as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado‑Membro, substantivamente nulo» (33).
47. Poder‑se‑á argumentar que esta nova redação abrange todas as questões de direito substantivo, nomeadamente os requisitos do contrato, e que, por conseguinte, pretende inverter a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a determinação autónoma da existência do consentimento efetivo (34). Todavia, eu não assumiria que assim fosse, sem algumas cautelas. A expressão «a menos que» parece apontar para a presunção de validade do pacto atributivo de jurisdição (35). Além disso, nada nos trabalhos preparatórios da reformulação sugere que esta tivesse por objetivo alterar ou influenciar a jurisprudência do Tribunal de Justiça nesta matéria (36). Pelo contrário, a redação agora adotada parece refletir a abordagem do advogado‑geral G. Slynn no processo Elefanten Schuh, segundo o qual, para determinar a existência do pacto atributivo de jurisdição (em matérias não reguladas pelo direito da União) (37) é necessário invocar a lei do Estado‑Membro cujos tribunais foram escolhidos (38). Em contrapartida, ao abrigo do artigo 23.° do Regulamento n.° 44/2001, deve ser entendido que esta questão é regulada pelo direito do Estado‑Membro a cujos tribunais for submetida a questão.
48. Seja como for, não existe no presente caso qualquer indicação de que existam dúvidas quanto à validade material do pacto atributivo de jurisdição. Por conseguinte, não é necessário invocar qualquer norma de direito material.
49. No meu entender, a razão principal que levou a que a referida expressão fosse incluída no atual artigo 25.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012 é a intenção de alinhar este artigo com o teor do artigo 5.° da Convenção da Haia sobre os Acordos de Eleição do Foro (39), que entrou em vigor em 1 de outubro de 2015 (40). Nos termos do n.° 1 do referido artigo 5.°, «[o] tribunal ou os tribunais de um Estado Contratante designados por um acordo exclusivo de eleição do foro têm competência para decidir qualquer litígio a que o acordo se aplica, salvo se este for considerado nulo nos termos do direito desse Estado» (41).
50. A União Europeia é membro da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (42) e parte contratante na Convenção da Haia sobre os Acordos de Eleição do Foro (43). Dado que a matéria abrangida pela convenção se insere num domínio em que, por força dos Regulamentos n.° 44/2001 e n.° 1215/2012, a União tem exercido a sua competência, há interesse em alinhar, tanto quanto possível, a convenção e o sistema instituído pela União nos referidos regulamentos.
51. Em termos mais gerais, nos termos do artigo 3.°, alínea b), da Convenção da Haia de 2005, salvo indicação expressa das partes em contrário, um acordo de eleição do foro que designe os tribunais de um Estado Contratante ou um ou mais tribunais específicos de um Estado Contratante é considerado um acordo exclusivo. Além disso, como a Comissão acertadamente refere, o relatório explicativo da convenção (44) aborda expressamente a questão de um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais de um país em geral ou a um ou mais tribunais específicos de um país (45).
Conclusão
52. À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão submetida pelo Pécsi Törvényszék (Tribunal de Pécs) nos seguintes termos:
Uma cláusula incluída nas cláusulas contratuais gerais de um dos contraentes e referida no contrato celebrado entre estes, que atribui competência exclusiva e definitiva aos tribunais de uma cidade ou de uma localidade específica de um Estado‑Membro para dirimirem os litígios que não sejam objeto de resolução amigável entre as partes, deve ser interpretada no sentido de constituir um «pacto atributivo de jurisdição» na aceção do artigo 23.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
1 – Língua original: inglês.
2 – Regulamento do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).
3 – Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO L 177, p. 6).
4 – A seguir designada de «antecessora jurídica da Alstom».
5 – JO 1972, L 299, p. 32. Conforme alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa Convenção.
6 – Acórdão TNT Express Nederland (C‑533/08, EU:C:2010:243, n.° 36 e jurisprudência referida).
7 – V. acórdão Refcomp (C‑543/10, EU:C:2013:62, n.° 19).
8 – V. Hess, B., Europäisches Zivilprozessrecht, C. F. Müller, Heidelberg, 2010, p. 310, n.° 128.
9 – V. Magnus, U., in U. Magnus e P. Mankowski, Brussels I Regulation, 2.ª ed., Sellier, 2012, Munique, Artigo 23.°, n.° 1.
10 – V. também considerando 14 do Regulamento n.° 44/2001, segundo o qual «[a] autonomia das partes num contrato […] deve ser respeitada sob reserva das competências exclusivas definidas pelo presente regulamento».
11 – V. acórdão Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337, n.° 28).
12 – V., por exemplo, acórdão Galeries Segoura (25/76, EU:C:1976:178, n.° 6).
13 – Para utilizar a terminologia de Magnus, U., in U. Magnus e P. Mankowski, Brussels I Regulation, 2.ª ed., Sellier, 2012, Munique, Artigo 23.°, n.° 15.
14 – V. acórdão Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337, n.° 25).
15 – V. Kropholler, J., von Hein, J., Europäisches Zivilprozessrecht, Verlag Recht und Wirtschaft, Francoforte (do Meno), 9.ª ed., 2011, Artigo 23.° EuGVO, n.° 17.
16 – V. acórdãos Powell Duffryn (C‑214/89, EU:C:1992:115, n.os 13 e 14) e Refcomp (C‑543/10, EU:C:2013:62, n.° 21).
17 – V. acórdão Castelletti (C‑159/97, EU:C:1999:142, n.° 52).
18 – V. acórdãos MSG (C‑106/95, EU:C:1997:70, n.° 15 e jurisprudência referida) e El Majdoub (C‑322/14, EU:C:2015:334, n.° 29).
19 – Na terminologia jurídica francesa, vice du consentement.
20 – A questão da determinação da lei nacional aplicável a essas questões é discutida na literatura académica: v. Kropholler, J., von Hein, J., Europäisches Zivilprozessrecht, Verlag Recht und Wirtschaft, Francoforte (do Meno), 9.ª ed., 2011, Artigo 23.° EuGVO, n.° 28.
21 – V., entre muitos outros, Gebauer, M., «Das Prorogationsstatut im Europäischen Zivilprozessrecht», in H. Kronke/K. Thorn (eds), Grenzen überwinden – Prinzipien bewahren, Festschrift für Bernd von Hoffmann zum 70.Geburtstag, Verlag Ernst und Werner Gieseking, Bielefeld, 2001, pp. 577‑588, em especial p. 577.
22 – O sublinhado é meu.
23 – V. acórdão Estasis Saloti di Colzani (24/76, EU:C:1976:177, n.° 10). V. também Torbus, A., Umowa Jurysdykcyjna w Systemie Międzynarodowego Postępowania Cywilnego, Toruń, 2012, p. 262.
24 – V. acórdão Coreck (C‑387/98, EU:C:2000:606, n.° 15).
25 – Acórdão Meeth (23/78, EU:C:1978:198).
26 – V. acórdão Meeth (23/78, EU:C:1978:198, n.° 5).
27 – V. conclusões do advogado‑geral F. Capotorti no processo Meeth (23/78, EU:C:1978:183, n.° 2).
28 – Acórdão Meeth (23/78, EU:C:1978:198).
29 – V. também n.° 51 infra.
30 – Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO L 351, p. 1).
31 – Nos termos do n.° 1 desta disposição, o Regulamento n.° 1215/2012 aplica‑se apenas às ações judiciais intentadas em 10 de janeiro de 2015 ou em data posterior.
32 – V. considerando 22 do Regulamento n.° 1215/2012 e a exposição de motivos da proposta da Comissão, COM(2010) 748 final, Bruxelas, 14.12.2000, a pp. 3‑4, disponível em http://eur‑lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2010:0748:FIN:PT:PDF.
33 – O sublinhado é meu.
34 – Esta possibilidade é referida por Magnus, U., in U. Magnus e P. Mankowski, Brussels I bis Regulation, Verlag Otto Schmidt, Colónia, 2016, Artigo 23.°, n.° 79a, ainda que este autor não perfilhe esse entendimento.
35 – V. também Lenaerts, K., Stapper, Th., «Die Entwicklung der Brüssel I‑Verordnung im Dialog des Europäischen Gerichtshofs mit dem Gesetzgeber», in 78 Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht (RabelsZ), 2014, pp. 252‑293, em especial p. 282; e Magnus, U., in U. Magnus e P. Mankowski, Brussels I bis Regulation, Verlag Otto Schmidt, Colónia, 2016, Artigo 25.°, n.° 79a.
36 – V. Magnus, U., in U. Magnus e P. Mankowski, Brussels I bis Regulation, Verlag Otto Schmidt, Colónia, 2016, Artigo 25.°, n.° 79a.
37 – V. n.° 35 supra.
38 – Conclusões do advogado‑geral G. Slynn no processo Elefanten Schuh (150/80, EU:C:1981:112, p. 1698). V. também Mankowski, P., in Rauscher, T. (ed.), Brüssel Ia‑VO, 4.ª ed., Verlag Otto Schmidt, Colónia, 2016, Artigo 25.°, n.° 26.
39 – Convenção de 30 de junho de 2005 sobre os Acordos de Eleição do Foro, disponível em: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/specialised‑sections/choice‑of‑court.
40 – Ou seja, depois da data dos factos do caso presente e da data em que o órgão jurisdicional nacional procedeu ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.
41 – O sublinhado é meu.
42 – V. Decisão do Conselho, de 5 de outubro de 2006, relativa à adesão da Comunidade à Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (2006/719/CE), JO L 297, p. 1.
43 – A União assinou e ratificou esta convenção. Tendo em conta o exercício, pela União, de competências relativas às matérias reguladas pela convenção, os Estados‑Membros da UE, à exceção da Dinamarca (v. artigos 1.° e 2.° do Protocolo relativo à posição da Dinamarca), estão automaticamente vinculados pela convenção, por força da ratificação pela União. Presentemente, esta convenção vincula 29 sujeitos: a União Europeia, 27 dos seus Estados‑Membros (a totalidade, com a exceção da Dinamarca) e o México (v. https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/specialised‑sections/choice‑of‑court).
44 – Relatório explicativo da Convenção da Haia de 2005 sobre os Acordos de Eleição do Foro (a seguir «relatório explicativo»), disponível em https://assets.hcch.net/docs/a90b5aea‑89cf‑4541‑b7b7‑e5e960703845.pdf.
45 – V. n.° 103 do relatório explicativo: «Assim, um acordo que designe ‘os tribunais de França’ é considerado […] exclusivo para os efeitos da convenção, ainda que não especifique qual o tribunal de França que irá conhecer do litígio, e ainda que não exclua especificamente a competência de outros tribunais de outros Estados. Neste caso, a lei francesa poderá decidir em que tribunal ou tribunais poderá ser intentada a ação. Sob reserva de uma tal regra, o demandante pode escolher qualquer tribunal em França.»