Processos apensos C‑359/14 e C‑475/14
«ERGO Insurance» SE, representada por «ERGO Insurance» SE Lietuvis filialas,
contra
«If P&C Insurance» AS, representada por «IF P&C Insurance» AS filialas (C‑359/14),
e
«Gjensidige Baltic» AAS, representada por «Gjensidige Baltic» AAS Lietuvos filialas,
contra
«PZU Lietuva» UAB DK (C‑475/14)
[pedido de decisão prejudicial apresentado, respetivamente, pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (tribunal distrital de Vilnius) e pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia)]
«Reenvio prejudicial – Cooperação judiciária em matéria civil – Determinação da lei aplicável – Regulamentos (CE) n.° 864/2007 e (CE) n.° 593/2008 – Diretiva 2009/103/CE – Acidente causado por um camião com um reboque acoplado, estando os veículos seguros por seguradoras diferentes – Acidente ocorrido num Estado‑Membro diferente daquele em que foram celebrados os contratos de seguro – Ação de regresso entre as seguradoras – Lei aplicável – Conceitos de ‘obrigações contratuais’ e de ‘obrigações extracontratuais’»
Sumário do acórdão
O artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que esta disposição não contém nenhuma regra de conflito especial vocacionada para determinar a lei aplicável à ação de regresso entre seguradoras em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal.
Os Regulamentos (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), e (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II), devem ser interpretados no sentido de que a lei aplicável a uma ação de regresso intentada pela seguradora de um veículo trator, que indemnizou as vítimas de um acidente causado pelo condutor do referido veículo, contra a seguradora do reboque acoplado no momento desse acidente é determinada em aplicação do artigo 7.° do Regulamento Roma I se as regras da responsabilidade extracontratual aplicáveis a esse acidente nos termos dos artigos 4.° e seguintes do Regulamento Roma I estabelecerem uma repartição da obrigação de reparação do dano.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)
«Reenvio prejudicial – Cooperação judiciária em matéria civil – Determinação da lei aplicável – Regulamentos (CE) n.° 864/2007 e (CE) n.° 593/2008 – Diretiva 2009/103/CE – Acidente causado por um camião com um reboque acoplado, estando os veículos seguros por seguradoras diferentes – Acidente ocorrido num Estado‑Membro diferente daquele em que foram celebrados os contratos de seguro – Ação de regresso entre as seguradoras – Lei aplicável – Conceitos de ‘obrigações contratuais’ e de ‘obrigações extracontratuais’»
Nos processos apensos C‑359/14 e C‑475/14,
que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.° TFUE, respetivamente, pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (tribunal distrital de Vilnius) e pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia), por decisões de 15 julho e 8 de outubro de 2014, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 23 julho e 17 de outubro de 2014, nos processos
«ERGO Insurance» SE, representada por «ERGO Insurance» SE Lietuvis filialas,
contra
«If P&C Insurance» AS, representada por «IF P&C Insurance» AS filialas (C‑359/14),
e
«Gjensidige Baltic» AAS, representada por «Gjensidige Baltic» AAS Lietuvos filialas,
contra
«PZU Lietuva» UAB DK (C‑475/14),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),
composto por: L. Bay Larsen, presidente da Terceira Secção, exercendo funções de presidente da Quarta Secção, J. Malenovský, M. Safjan (relator), S. Prechal e K. Jürimäe, juízes,
advogado‑geral: E. Sharpston,
secretário: A. Calot Escobar,
vistos os autos,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da «ERGO Insurance» SE, representada pela «ERGO Insurance» SE Lietuvos filialas, por M. Navickas, advokatas,
– em representação da «Gjensidige Baltic» AAS, representada pela «Gjensidige Baltic» AAS Lietuvos filialas, por M. A. Rjabovs,
– em representação da «If P&C Insurance» AS, representada pela «If P&C Insurance» AS filialas, por A. Kunčiuvienė,
– em representação do Governo lituano, por R. Krasuckaitė, G. Taluntytė e D. Kriaučiūnas, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão Europeia, por A. Steiblytė e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 24 de setembro de 2015,
profere o presente
Acórdão
1 Os pedidos de decisão prejudicial são relativos à interpretação do artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 263, p. 11), bem como dos Regulamentos (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (JO L 177, p. 6, a seguir «Regulamento Roma I») e (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (JO L 199, p. 40, a seguir «Regulamento Roma II»).
2 Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois litígios que opõem, respetivamente, a «ERGO Insurance» SE à «If P&C Insurance» AS e a «Gjensidige Baltic» AAS (a seguir «Gjensidige Baltic») à «PZU Lietuva» UAB DK (a seguir «PZU Lietuva»), companhias de seguros lituanas, acerca da lei aplicável a ações de regresso entre as referidas partes, na sequência de acidentes de viação ocorridos na Alemanha.
Quadro jurídico
Direito da União
Regulamento Roma I
3 Nos termos do considerando 7 do Regulamento Roma I:
O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [(JO L 12, p. 1, a seguir ‘Regulamento Bruxelas I’)] e com o Regulamento [Roma II].»
4 O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Roma I define o âmbito de aplicação deste regulamento do seguinte modo:
«O presente regulamento é aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis.
Não se aplica, em especial, às matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.»
5 O artigo 4.° deste regulamento, com a epígrafe «Lei aplicável na falta de escolha», dispõe:
«1. Na falta de escolha nos termos do artigo 3.° e sem prejuízo dos artigos 5.° a 8.°, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo:
a) O contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual;
b) O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual;
c) O contrato que tem por objeto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel é regulado pela lei do país onde o imóvel se situa;
d) Sem prejuízo da alínea c), o arrendamento de um bem imóvel celebrado para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos é regulado pela lei do país em que o proprietário tem a sua residência habitual, desde que o locatário seja uma pessoa singular e tenha a sua residência habitual nesse mesmo país;
e) O contrato de franquia é regulado pela lei do país em que o franqueado tem a sua residência habitual;
f) O contrato de distribuição é regulado pela lei do país em que o distribuidor tem a sua residência habitual;
g) O contrato de compra e venda de mercadorias em hasta pública é regulado pela lei do país em que se realiza a compra e venda em hasta pública, caso seja possível determinar essa localização;
h) Um contrato celebrado no âmbito de um sistema multilateral que permita ou facilite o encontro de múltiplos interesses de terceiros, na compra ou venda de instrumentos financeiros, na aceção do ponto 17) do n.° 1 do artigo 4.° da Diretiva 2004/39/CE, de acordo com regras não discricionárias e regulado por uma única lei, é regulado por essa lei.
2. Caso os contratos não sejam abrangidos pelo n.° 1, ou se partes dos contratos forem abrangidas por mais do que uma das alíneas a) a h) do n.° 1, esses contratos são regulados pela lei do país em que o contraente que deve efetuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual.
3. Caso resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país.
4. Caso a lei aplicável não possa ser determinada nem em aplicação do n.° 1 nem do n.° 2, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita.»
6 O artigo 7.° do referido regulamento, com a epígrafe «Contratos de seguro», tem a seguinte redação:
«1. O presente artigo aplica‑se aos contratos a que se refere o n.° 2, independentemente de o risco coberto se situar num Estado‑Membro, e a todos os outros contratos de seguro que cubram riscos situados no território dos Estados‑Membros. Não se aplica a contratos de resseguro.
2. Um contrato de seguro que cubra um grande risco, tal como definido na alínea d) do artigo 5.° da Primeira Diretiva 73/239/CEE, do Conselho, de 24 de julho de 1973, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao acesso à atividade de seguro direto não vida e ao seu exercício [(JO L 228, p. 3), conforme alterada pela Diretiva 2005/68/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 323, p. 1)], é regulado pela lei escolhida pelas partes nos termos do artigo 3.° do presente regulamento.
Se a lei aplicável não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato de seguro é regulado pela lei do país em que o segurador tem a sua residência habitual. Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente, é aplicável a lei desse outro país.
[…]6. Para efeitos do presente artigo, o país no qual o risco se situa é determinado nos termos da alínea d) do artigo 2.° da Segunda Diretiva 88/357/CEE, do Conselho, de 22 de junho de 1988, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao seguro direto não vida, que fixa disposições destinadas a facilitar o exercício da livre prestação de serviços [(JO L 172, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 149, p. 14)] e, no caso do seguro de vida, o país no qual o risco se situa é o país do compromisso na aceção da alínea g) do n.° 1 do artigo 1.° da Diretiva 2002/83/CE.»
7 Nos termos do artigo 15.° do mesmo regulamento, com a epígrafe «Sub‑rogação legal»:
«Sempre que, por força de um contrato, uma pessoa (“o credor”) tenha direitos relativamente a outra pessoa (“o devedor”), e um terceiro tenha a obrigação de satisfazer o direito do credor ou tenha efetivamente satisfeito esse direito em cumprimento dessa obrigação, a lei aplicável à obrigação do terceiro determina se e em que medida este pode exercer os direitos do credor contra o devedor, de acordo com a lei que regula as suas relações.»
8 O artigo 16.° do Regulamento Roma I, com a epígrafe «Pluralidade de devedores», dispõe:
«Se o credor tiver um direito contra vários devedores, responsáveis pelo mesmo direito, e se um deles já tiver satisfeito total ou parcialmente o direito, a lei que regula a obrigação do devedor para com o credor é igualmente aplicável ao direito de regresso do devedor contra os outros devedores. Os outros devedores podem invocar os meios de defesa que possam opor ao credor, na medida do permitido pela lei aplicável às suas obrigações para com o credor.»
9 O artigo 23.° deste regulamento, com a epígrafe «Relação com outras disposições do direito comunitário», prevê:
«À exceção do artigo 7.°, o presente regulamento não prejudica a aplicação das disposições do direito comunitário que, em matérias específicas, regulem os conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais.»
Regulamento Roma II
10 O considerando 7 do Regulamento Roma II enuncia:
«O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento [Bruxelas I] e com os instrumentos referentes à lei aplicável às obrigações contratuais.»
11 Nos termos do artigo 4.° deste regulamento, com a epígrafe «Regra geral»:
«1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indiretas desse facto.
2. Todavia, sempre que a pessoa cuja responsabilidade é invocada e o lesado tenham a sua residência habitual no mesmo país no momento em que ocorre o dano, é aplicável a lei desse país.
3. Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias que a responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco tem uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país. Uma conexão manifestamente mais estreita com um outro país poderá ter por base, nomeadamente, uma relação preexistente entre as partes, tal como um contrato, que tenha uma ligação estreita com a responsabilidade fundada no ato lícito, ilícito ou no risco em causa.»
12 O artigo 15.° do Regulamento Roma II, com a epígrafe «Alcance da lei aplicável», prevê:
«A lei aplicável às obrigações extracontratuais referidas no presente regulamento rege, designadamente:
a) O fundamento e o âmbito da responsabilidade, incluindo a determinação das pessoas às quais pode ser imputada responsabilidade pelos atos que praticam;
b) As causas de exclusão da responsabilidade, bem como qualquer limitação e repartição da responsabilidade;
[…]»13 O artigo 18.° do referido regulamento, com a epígrafe «Acão direta contra o segurador do responsável», dispõe:
«O lesado pode demandar diretamente o segurador do responsável pela reparação, se a lei aplicável à obrigação extracontratual ou a lei aplicável ao contrato de seguro assim o previr.»
14 O artigo 19.° do mesmo regulamento, com a epígrafe « Sub‑rogação», tem a seguinte redação:
«Se, por força de uma obrigação extracontratual, uma pessoa (“o credor”), tiver direitos relativamente a outra pessoa (“o devedor”), e um terceiro tiver a obrigação de satisfazer o direito do credor, ou tiver efetivamente satisfeito o credor em cumprimento dessa obrigação, a lei que rege esta obrigação do terceiro determina se e em que medida este pode exercer os direitos do credor contra o devedor, segundo a lei que rege as suas relações.»
15 Nos termos do artigo 20.° do Regulamento Roma II, com a epígrafe «Responsabilidade múltipla»:
«Se o credor tiver um direito contra vários devedores responsáveis pelo mesmo direito e se um deles já tiver satisfeito total ou parcialmente o pedido, o direito de este devedor exigir reparação aos restantes codevedores rege‑se pela lei aplicável às obrigações extracontratuais desse devedor para com o credor.»
16 O artigo 27.° do referido regulamento, com a epígrafe «Relação com outras disposições de direito comunitário», dispõe:
«O presente regulamento não prejudica a aplicação das disposições do direito comunitário que, em matérias específicas, estabeleçam regras de conflitos de leis referentes a obrigações extracontratuais.»
Diretiva 2009/103
17 O considerando 26 da Diretiva 2009/103 enuncia:
«No interesse do segurado, é conveniente que cada apólice de seguro garanta, através de um prémio único em cada um dos Estados‑Membros, a cobertura exigida pela sua legislação ou a cobertura exigida pela legislação do Estado‑Membro de estacionamento habitual, sempre que esta última for superior.»
18 O artigo 3.° desta diretiva, com a epígrafe «Obrigação de segurar veículos», no terceiro parágrafo dispõe:
«Cada Estado‑Membro adota todas as medidas adequadas para que o contrato de seguro abranja igualmente:
a) Os prejuízos causados no território de outro Estado‑Membro, de acordo com a respetiva legislação nacional em vigor;
[…]»19 O artigo 14.° da referida diretiva, com a epígrafe «Prémio único», tem a seguinte redação:
«Os Estados‑Membros tomam todas as medidas necessárias para garantir que qualquer apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos:
a) Abranja, com base num prémio único e durante todo o período de vigência do contrato de seguro, a totalidade do território da Comunidade, incluindo as estadias do veículo noutro Estado‑Membro durante o período de vigência contratual; e
b) Garanta, com base no mesmo prémio único, em cada um dos Estados‑Membros, a cobertura exigida pela respetiva legislação ou a cobertura exigida pela legislação do Estado‑Membro em que o veículo tiver o seu estacionamento habitual, sempre que esta última for superior.»
Direito lituano
20 As disposições da Diretiva 2009/103 foram transpostas para o direito interno pela Lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil respeitante à circulação de veículos automóveis (TPVCAPDĮ), de 5 de março de 2004 (Zin., 2004, n.° 46‑1498), conforme alterada pela Lei n.° X‑1137, de 17 de maio de 2007 (Zin., 2007, n.° 61‑2340, a seguir «Lei do seguro obrigatório»).
21 O artigo 10.° da Lei do seguro obrigatório, com a epígrafe «Âmbito territorial do contrato de seguro», no n.° 1 dispõe:
«Após o pagamento do prémio único (global), o contrato de seguro [de um veículo que tem o seu estacionamento habitual no território lituano], ou o contrato de seguro de fronteira confere, durante toda a vigência do contrato, incluindo as estadias do veículo noutros Estados‑Membros da União durante a vigência do contrato, em qualquer Estado‑Membro, a cobertura exigida pela legislação deste em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos ou a cobertura resultante da presente lei, quando esta última for superior. […]»
22 Nos termos do artigo 11.° da Lei do seguro obrigatório, com a epígrafe «Montantes seguros e prémios de seguro»:
«[…]
3. Em caso de danos causados noutro Estado‑Membro, a indemnização paga pela seguradora está subordinada aos montantes de cobertura fixados pela legislação desse Estado‑Membro ou aos montantes de cobertura previstos no n.° 1 do presente artigo, quando estes últimos forem superiores.
[…]»23 O artigo 16.° da referida lei, com a epígrafe «Princípios aplicáveis ao pagamento da indemnização», prevê, no seu n.° 1:
«A seguradora responsável ou o Serviço Nacional de Seguros pagará uma indemnização se o utilizador do veículo automóvel incorrer em responsabilidade civil por danos causados a terceiro. A indemnização será paga em conformidade com a legislação que regula o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel do Estado‑Membro em que ocorreu o acidente rodoviário.
[…]»Litígios no processo principal e questões prejudiciais
Processo C‑359/14
24 Em 1 de setembro de 2011, nos arredores de Mannheim (Alemanha), um veículo trator com um reboque acoplado, capotou numa estrada quando invertia a marcha. Com base nas verificações efetuadas pelos agentes da polícia de que se deslocaram ao local, o condutor do veículo trator foi declarado responsável pelo acidente. Em consequência, a seguradora deste veículo, sucursal da «ERGO Insurance» SE, pagou às vítimas do referido acidente uma indemnização no montante de 7 760,02 LTL (cerca de 2 255 euros). Seguidamente, esta seguradora intentou uma ação judicial no órgão jurisdicional de reenvio, na qual pede a condenação da seguradora do reboque, em concreto a sucursal da «If P&C Insurance» AS, no pagamento de metade da indemnização que teve que pagar, com o fundamento de que a referida seguradora deveria assumir a responsabilidade solidária pelos danos causados.
25 Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, há dúvidas quanto à determinação da lei aplicável ao litígio entre estas duas seguradoras.
26 Nestas circunstâncias, o Vilniaus miesto apylinkės teismas decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) Há que interpretar o artigo 4.°, n.° 4, do [Regulamento Roma I], nos termos do qual ‘[c]aso a lei aplicável não possa ser determinada nem em aplicação do n.° 1 nem do n.° 2 [deste artigo 4.°], o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita’, no sentido de que a situações como a em causa no processo principal deve ser aplicada a lei alemã?
2) Em caso de resposta negativa à primeira questão, deve o princípio consagrado no artigo 4.° do [Regulamento Roma II] ser interpretado no sentido de que, em situações como a em causa no processo principal, a lei aplicável ao litígio entre a seguradora do trator e a seguradora do reboque deve ser determinada de acordo com a lei do país em que ocorreu o dano causado pelo acidente rodoviário?»
Processo C‑475/14
27 Num acidente rodoviário ocorrido na Alemanha em 21 de janeiro de 2011, um veículo trator com um reboque acoplado causou danos a bens pertencentes a outras pessoas. Na ocasião do acidente, a responsabilidade civil do veículo trator estava coberta pela sucursal lituana da Gjensidige Baltic O reboque estava seguro por um contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado com a PZU Lietuva.
28 Na sequência de reclamações apresentadas na Alemanha pelas vítimas desse acidente, a Gjensidige Baltic pagou indemnizações no valor de 1 254,36 LTL (cerca de 1 254 euros). A Gjensidige Baltic considera que, uma vez que estas indemnizações abrangiam a totalidade do prejuízo sofrido pelas vítimas, podia intentar uma ação de regresso contra a PZU Lietuva para obter o reembolso de metade do referido montante, ou seja, 2 165,53 LTL (cerca de 629 euros).
29 Por sentença de 2 de janeiro de 2013, o Vilniaus miesto 1‑asis apylinkės teismas julgou procedente a ação proposta pela Gjensidige Baltic. Condenou a PZU Lietuva no pagamento à demandante da indemnização paga por esta, no montante de 2 165,53 LTL acrescido de juros à taxa anual de 6%. Este órgão jurisdicional indicou que, em conformidade com o artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II, o direito alemão era aplicável à obrigação extracontratual decorrente do facto danoso. Ora, por força do direito alemão, havia lugar a uma repartição de responsabilidade pelos danos resultantes de um acidente rodoviário causado por um veículo com um reboque acoplado. Quando o dano é indemnizado por uma das seguradoras, esta tem o direito de exigir a outra seguradora metade do montante pago.
30 Por acórdão de 8 de novembro de 2013, o Vilniaus apygardos teismas (tribunal de recurso de Vilnius) anulou a sentença do Vilniaus miesto apylinkės teismas e julgou improcedente a ação de regresso intentada pela Gjensidige Baltic. O tribunal de recurso entendeu que, no caso em apreço, as questões relativas à responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo deviam ser resolvidas com base no contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação do veículo e que o Regulamento Roma II não era aplicável. Com efeito, uma vez que, no processo principal, tinha sido celebrado um contrato de seguro obrigatório, a situação em causa não poderia recair no âmbito da responsabilidade civil extracontratual. Considerando que a obrigação da PZU Lietuva resultava do contrato de seguro obrigatório, este órgão jurisdicional concluiu que era aplicável o direito lituano.
31 A Gjensidige Baltic interpôs recurso para o órgão jurisdicional de reenvio, destinado a obter a anulação deste acórdão e a confirmação da sentença de 2 de janeiro de 2013 do Vilniaus miesto apylinkės teismas.
32 O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o litígio tem essencialmente por objeto a qualificação da relação jurídica existente entre as seguradoras do veículo trator e do reboque e a determinação da lei aplicável a esta relação. Essa qualificação é determinante para este litígio, uma vez que as ordens jurídicas lituana e alemã consagram princípios diferentes de repartição da responsabilidade entre as seguradoras do veículo trator e do reboque quando o dano é causado por um veículo acoplado.
33 Além disso, é necessário determinar se, como alega a Gjensidige Baltic, o artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103 define uma regra de conflito de leis nos termos da qual a lei do local do acidente é aplicável a um litígio entre seguradoras como o do processo principal.
34 Nestas circunstâncias, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103 estabelece uma norma de conflitos que deve ser aplicada ratione personae não só às vítimas dos sinistros rodoviários como também às seguradoras do veículo responsável pelos danos causados no sinistro, para efeitos de determinação da lei aplicável às relações entre elas, e tem a natureza de norma especial em relação às normas sobre a lei aplicável previstas nos Regulamentos Roma I e Roma II?
2) Se a resposta à primeira questão for negativa, importa determinar se as relações jurídicas entre as seguradoras no presente caso se enquadram no conceito de ‘obrigações contratuais’, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Roma I. Se as relações jurídicas entre as seguradoras se enquadrarem no conceito de ‘obrigações contratuais’, importa saber se essas relações estão abrangidas na categoria dos contratos de seguro (relações jurídicas) e se a lei que lhes é aplicável deve ser determinada em conformidade com o artigo 7.° do Regulamento Roma I.
3) Se a resposta às duas primeiras questões for negativa, importa determinar se, no caso de uma ação de regresso, as relações jurídicas entre as seguradoras dos veículos utilizados em conjunto se enquadram no conceito de ‘obrigação extracontratual’ na aceção do Regulamento Roma II e se essas relações devem ser tratadas como relações jurídicas derivadas, resultantes do sinistro rodoviário (facto danoso), para efeitos de determinação da lei aplicável em conformidade com o artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II. Num caso como o presente, devem as seguradoras dos veículos utilizados em conjunto ser tratadas como devedores responsáveis pelo mesmo direito na aceção do artigo 20.° do Regulamento Roma II, e deve a lei aplicável às relações entre elas ser determinada em conformidade com essa disposição?»
35 Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de novembro de 2014, os processos C‑359/14 e C‑475/14 foram apensos para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.
Quanto às questões prejudiciais
36 Com as suas questões, que devem ser analisadas conjuntamente, os órgãos jurisdicionais de reenvio procuram, em substância, saber como devem ser interpretados os Regulamentos Roma I e Roma II, bem como a Diretiva 2009/103 para efeitos da determinação da lei ou das leis aplicáveis no âmbito de uma ação de regresso intentada pela seguradora de um veículo trator, que indemnizou a vítima de um acidente causado pelo condutor do referido veículo, contra a seguradora do reboque acoplado durante o referido acidente.
37 Cabe recordar, antes de mais, que, como resulta dos seus artigos 1.os, os Regulamentos Roma I e Roma II harmonizaram as regras de conflito de leis aplicáveis, em matéria civil e comercial, respetivamente às obrigações contratuais e às obrigações extracontratuais. A lei aplicável a estas duas categorias de obrigações deve ser determinada através das disposições que figuram num dos dois regulamentos, sem prejuízo, todavia, das regras previstas nos artigos 23.° e 25.° do Regulamento Roma I e nos artigos 27.° e 28.° do Regulamento Roma II.
38 Sobre este último aspeto, saliente‑se, por um lado, em resposta à questão apresentadas pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas no processo C‑475/14, que o artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103 não enuncia uma regra de conflito de leis especial relativamente às regras de conflito consagradas nos Regulamentos Roma I e Roma II no que respeita às ações de regresso entre seguradoras e, portanto, não preenche as condições previstas, respetivamente, no artigo 23.° do Regulamento Roma I e no artigo 27.° do Regulamento Roma II.
39 A Diretiva 2009/103 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de adotarem medidas que garantem a proteção da vítima de um acidente rodoviário e do detentor do veículo em causa nesse acidente. Segundo o seu considerando 12, esta diretiva tem por objetivo geral assegurar a proteção das vítimas de acidentes garantindo que estas beneficiam de um montante mínimo de cobertura de seguro.
40 Não resulta dos termos nem dos objetivos da Diretiva 2009/103 que esta pretende estabelecer regras de conflito de leis.
41 Mais especificamente, o artigo 14.° da referida diretiva, em conjugação com o considerando 26 da mesma, limita‑se a exigir aos Estados‑Membros que adotem as medidas necessárias para que as apólices de seguro automóvel cubram, com base num prémio único, a totalidade do território da União Europeia durante a vigência do contrato, e garantam, com base nesse prémio, em cada um dos Estados‑Membros, a cobertura exigida pela respetiva legislação, ou a cobertura exigida pela legislação do Estado‑Membro em que o veículo tenha o seu estacionamento habitual, sempre que esta última seja superior.
42 Esta disposição refere‑se, pois, exclusivamente ao âmbito territorial e ao nível da cobertura que a seguradora é obrigada a proporcionar, para assegurar uma proteção adequada das vítimas de acidentes rodoviários. Não se pode deduzir daí uma regra segundo a qual a legislação do Estado‑Membro determinada desse modo regula a repartição de responsabilidade entre seguradoras.
43 Seguidamente, no que respeita aos âmbitos de aplicação respetivos dos Regulamentos Roma I e Roma II, os conceitos de «obrigação contratual» e de «obrigação extracontratual» que neles figuram devem ser interpretados de forma autónoma, por referência à sistemática e à finalidade desses regulamentos (v., por analogia, acórdão ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.° 27). Deve igualmente ser tido em consideração, como resulta do considerando 7 de ambos estes regulamentos, o objetivo de coerência na aplicação recíproca destes regulamentos, mas igualmente do Regulamento Bruxelas I, que procede, designadamente, a uma distinção, no seu artigo 5.°, entre as matérias contratual e extracontratual.
44 Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a este último regulamento que só uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do demandante está abrangida pela «matéria contratual» na aceção do artigo 5.°, ponto 1, do referido regulamento (v. acórdão Kolassa, C‑375/13, EU:C:2015:37, n.° 39). Por analogia, e em conformidade com o objetivo de coerência indicado no n.° 43 do presente acórdão, deve considerar‑se que o conceito de «obrigação contratual», na aceção do artigo 1.° do Regulamento Roma I, designa uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra.
45 No que respeita ao conceito de «obrigação extracontratual», na aceção do artigo 1.° do Regulamento Roma II, há que recordar que o conceito de «matéria extracontratual», na aceção do artigo 5.°, ponto 3, do Regulamento Bruxelas I, abrange qualquer ação destinada a acionar a responsabilidade do demandado e que não esteja relacionada com a referida «matéria contratual» na aceção do ponto 1 deste artigo 5.° (acórdão ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.° 33 e jurisprudência aí referida). Além disso, cumpre observar, como resulta do artigo 2.° do Regulamento Roma II, que este é aplicável às obrigações decorrentes de um dano, isto é, a todas as consequências decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco, do enriquecimento sem causa, da negotiorum gestio ou da culpa in contrahendo.
46 À luz destes elementos, deve entender‑se por «obrigação extracontratual», na aceção do Regulamento Roma II, uma obrigação que tem origem num dos acontecimentos enumerados no artigo 2.° deste regulamento e recordados no número anterior.
47 No presente caso, resulta das decisões de reenvio que existem obrigações contratuais, na aceção do Regulamento Roma I, entre as seguradoras e, respetivamente, os detentores ou os condutores do veículo trator e os detentores do reboque. Em contrapartida, não existe nenhuma relação contratual entre as duas seguradoras.
48 Além disso, a existência e o âmbito da obrigação de indemnização das vítimas em causa no processo principal dependem, antes de mais, de apreciações relativas aos acidentes rodoviários que estão na origem dos danos em causa. Essas apreciações, de natureza extracontratual, não têm conexão com a relação contratual que liga as seguradoras aos respetivos segurados.
49 No que respeita à possibilidade de a seguradora de um veículo trator, que indemnizou uma vítima na totalidade dos danos que sofreu devido a um acidente que envolveu tanto esse veículo trator como o reboque que lhe estava acoplado, intentar uma ação de regresso contra a seguradora do reboque, deve referir‑se o que se segue.
50 Em primeiro lugar, a própria existência de um direito de ação da seguradora de um veículo trator, cujo condutor causou um acidente, contra a seguradora do reboque acoplado depois de a vítima ter sido indemnizada não pode ser deduzida do contrato, pressupondo antes que haja simultaneamente responsabilidade extracontratual do detentor do referido reboque relativamente a esta mesma vítima.
51 Importa pois salientar que tal obrigação de indemnização que impende sobre o detentor do reboque deve ser considerada uma «obrigação extracontratual», na aceção do artigo 1.° do Regulamento Roma II. Portanto, é à luz do disposto nesse regulamento que deve ser determinada a lei aplicável à referida obrigação.
52 Em conformidade com o artigo 4.° do referido regulamento, salvo disposição em contrário do mesmo, a lei aplicável a essa responsabilidade extracontratual é a do país onde o dano ocorreu, em concreto, nos processos principais, o país onde o dano diretamente resultante do acidente é sofrido (v., neste sentido, acórdão Lazar, C‑350/14, EU:C:2015:802, n.° 24). Segundo o artigo 15.°, alínea a), do Regulamento Roma II, esta lei determinará o fundamento e o âmbito da responsabilidade, bem como as causas de repartição desta responsabilidade.
53 Consequentemente, é segundo a lei do local do dano direto, no caso o direito alemão, que devem ser determinados os devedores da obrigação de indemnização da vítima e, se for o caso, as contribuições correspondentes ao detentor do reboque e ao detentor ou condutor do veículo trator no dano causado à vítima.
54 Em segundo lugar, recorde‑se que a obrigação de uma seguradora indemnizar os danos causados a uma vítima não resulta do dano causado a esta última mas sim do contrato com o segurado responsável. Tal indemnização tem, portanto, origem numa obrigação contratual, devendo a lei aplicável a essa obrigação ser determinada em conformidade com o disposto no Regulamento Roma I.
55 Convém pois averiguar, à luz da lei aplicável, respetivamente, ao contrato de seguro dos veículos tratores, como os que estão em causa no processo principal, e ao dos reboques que lhes estavam acoplados, se as seguradoras destes dois tipos de veículos tinham efetivamente a obrigação de, em conformidade com os referidos contratos, indemnizar as vítimas de um acidente causado por estes últimos.
56 Em terceiro lugar, no que respeita à questão de saber se a seguradora de um veículo trator que tenha indemnizado a vítima dispõe, se for o caso, de um direito de sub‑rogação contra a seguradora do reboque, importa salientar que o artigo 19.° do Regulamento Roma II distingue entre as questões abrangidas pelo regime extracontratual e as abrangidas pelo regime contratual. Esta disposição aplica‑se designadamente à situação em que um terceiro, em concreto a seguradora, indemnizou a vítima de um acidente, credor de uma obrigação extracontratual de indemnização perante o condutor ou o detentor de um veículo automóvel, com o objetivo de cumprir essa obrigação.
57 Mais precisamente, o artigo 19.° do Regulamento Roma II prevê que, nesta hipótese, a questão de uma eventual sub‑rogação nos direitos da vítima é regulada pela lei aplicável à obrigação do terceiro, em concreto, a seguradora da responsabilidade civil, de indemnizar essa vítima.
58 Assim, a obrigação de a seguradora cobrir a responsabilidade civil do segurado relativamente à vítima resultante do contrato de seguro celebrado com o segurado, as condições em que a seguradora pode exercer os direitos detidos pela vítima do acidente contra as pessoas responsáveis pelo mesmo dependem do direito nacional que rege o referido contrato de seguro, determinado em aplicação do artigo 7.° do Regulamento Roma I.
59 Em contrapartida, a lei aplicável à determinação das pessoas suscetíveis de serem declaradas responsáveis e a uma eventual repartição de responsabilidade entre estas e as respetivas seguradoras, de acordo com o referido artigo 19.°, continuam subordinadas aos artigos 4.° e seguintes do Regulamento Roma II.
60 Importa designadamente considerar que, na hipótese de, segundo a lei aplicável por força destas últimas disposições do Regulamento Roma II, a vítima de um acidente rodoviário causado por um veículo trator com um reboque acoplado ter direitos tanto relativamente ao detentor do reboque como à seguradora deste último, a seguradora do veículo trator, depois de ter indemnizado a vítima, beneficia de um direito de ação contra a seguradora do reboque na medida em que a lei aplicável, segundo o artigo 7.° do Regulamento Roma I, ao contrato de seguro prevê uma sub‑rogação da seguradora nos direitos da vítima.
61 Assim sendo, incumbe aos tribunais de reenvio determinar, num primeiro momento, como devem as indemnizações a pagar às vítimas ser repartidas entre, por um lado, o condutor e o detentor do veículo trator e, por outro, o detentor do reboque, de acordo com as regras de direito nacional aplicáveis por força do Regulamento Roma II.
62 Num segundo momento, importa determinar, em conformidade com o artigo 7.° do Regulamento Roma I, a lei aplicável aos contratos de seguro celebrados entre os recorrentes no processo principal e o respetivo segurado, para saber se e em que medida as referidas seguradoras podem, pela via da sub‑rogação, exercer os direitos da vítima contra a seguradora do reboque.
63 Em face do exposto, há que responder à questões submetidas que o artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2003/109 deve ser interpretado no sentido de que esta disposição não contém nenhuma regra de conflito especial vocacionada para determinar a lei aplicável à ação de regresso entre seguradoras em circunstâncias como as do processo principal.
64 Os Regulamentos Roma I e Roma II devem ser interpretados no sentido de que a lei aplicável a uma ação de regresso intentada pela seguradora de um veículo trator, que indemnizou as vítimas de um acidente causado pelo condutor do referido veículo, contra a seguradora do reboque acoplado no momento desse acidente é determinada em aplicação do artigo 7.° do Regulamento Roma I se as regras da responsabilidade extracontratual aplicáveis a esse acidente nos termos dos artigos 4.° e seguintes do Regulamento Roma I estabelecerem uma repartição da obrigação de reparação do dano.
Quanto às despesas
65 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:
O artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que esta disposição não contém nenhuma regra de conflito especial vocacionada para determinar a lei aplicável à ação de regresso entre seguradoras em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal.
Os Regulamentos (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), e (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II), devem ser interpretados no sentido de que a lei aplicável a uma ação de regresso intentada pela seguradora de um veículo trator, que indemnizou as vítimas de um acidente causado pelo condutor do referido veículo, contra a seguradora do reboque acoplado no momento desse acidente é determinada em aplicação do artigo 7.° do Regulamento Roma I se as regras da responsabilidade extracontratual aplicáveis a esse acidente nos termos dos artigos 4.° e seguintes do Regulamento Roma I estabelecerem uma repartição da obrigação de reparação do dano.
Assinaturas
* Língua do processo: lituano.
apresentadas em 24 de setembro de 2015 (1)
Processos apensos C‑359/14 e C‑475/14
ERGO Insurance SE, agindo por intermédio da sua sucursal ERGO Insurance SE Lietuvos filialas
contra
If P&C Insurance AS, agindo por intermédio da sua sucursal If P&C Insurance AS filialas
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (Lituânia)]
e
AAS Gjensidige Baltic, agindo por intermédio da sua sucursal AAS «Gjensidige Baltic» Lietuvos filialas
contra
UAB DK «PZU Lietuva»
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Lituânia)]
«Cooperação judiciária em matéria civil — Determinação da lei aplicável — Âmbito de aplicação dos Regulamentos Roma I e Roma II — Diretiva 2009/103/CE — Acidente causado por um veículo trator acoplado a um reboque, estando o trator e o reboque seguros por seguradoras diferentes em matéria de responsabilidade civil — Acidente ocorrido num Estado‑Membro diferente daquele em que foram celebrados os contratos de seguro de responsabilidade civil»
1. Um veículo trator acoplado a um reboque esteve envolvido num acidente rodoviário ocorrido num Estado‑Membro distinto daquele em ambos os veículos estão registados e no qual estão cobertos por seguros de responsabilidade civil subscritos em duas seguradoras diferentes. A seguradora do veículo trator (o veículo rebocador) pagou integralmente a indemnização devida à vítima em consequência do acidente. Seguidamente, essa seguradora intentou uma ação de regresso contra a seguradora do reboque (o veículo rebocado), a fim de reaver uma parte do referido pagamento.
2. Nos presentes pedidos de decisão prejudicial, os dois órgãos jurisdicionais de reenvio pretendem saber se essa ação de regresso está abrangida pelo âmbito de aplicação das normas do direito da União que determinam a lei aplicável em matéria civil e comercial e, em caso afirmativo, que normas são aplicáveis. As questões no processo C‑359/14 foram apresentadas pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital de Vílnius); o processo C‑475/14 constitui um reenvio do Lietuvos Aukščiausiasis Teismas (Supremo Tribunal da Lituânia). Em ambos os processos são suscitadas questões importantes sobre o âmbito de aplicação e a interpretação da legislação da União que harmoniza as normas de conflito, ou seja, os Regulamentos Roma I (2) e Roma II (3). Suscita‑se igualmente a questão de saber se a Diretiva 2009/103/CE (4) introduz normas especiais, neste contexto, para determinar a lei aplicável aos acidentes de viação.
Quadro jurídico
Sistema de harmonização do direito internacional privado em matéria civil e comercial
3. No contexto da harmonização do direito internacional privado dos Estados‑Membros em matéria civil e comercial, a Convenção de Bruxelas (5) estabeleceu normas que identificavam o Estado cujos órgãos jurisdicionais tinham competência para apreciar e julgar um litígio transfronteiriço. Essa convenção foi substituída pelo Regulamento «Bruxelas I» (6). A Convenção de Roma (7) foi celebrada com o objetivo de dar continuidade ao processo de harmonização. A fase seguinte consistiu na adoção de dois regulamentos (conhecidos como Roma I e Roma II), a fim de assegurar que, em situações de conflito de leis, são aplicadas, em toda a União Europeia, as mesmas normas para determinar a lei nacional que regula o processo, independentemente do Estado‑Membro em que se situe o tribunal onde a ação é proposta. Entre os principais objetivos dos Regulamentos Roma I e Roma II figuram o bom funcionamento do mercado interno, o favorecimento da previsibilidade do resultado dos litígios, a certeza quanto à lei aplicável e a livre circulação das decisões judiciais (8).
4. Certos princípios são comuns aos dois regulamentos, nomeadamente o objetivo de assegurar a coerência entre o âmbito de aplicação material e a interpretação de ambos os diplomas, bem como entre estes e o Regulamento Bruxelas I (9). Os dois regulamentos também permitem a aplicação de normas de conflitos de leis previstas noutras disposições de direito da União que regulem domínios específicos (10).
Regulamento Roma I
5. O Regulamento Roma I é aplicável «às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis» (11).
6. A regra geral é a de que os contratos se regem pela lei escolhida pelas partes (12).
7. Na falta de escolha da lei aplicável pelas partes, a lei que rege o contrato é, em princípio, determinada pelas regras gerais estabelecidas no artigo 4.° O artigo 4.°, n.° 1, estabelece as normas que permitem determinar a lei aplicável a certos tipos específicos de contrato. De acordo com o artigo 4.°, n.° 2, outros tipos de contrato ou os contratos híbridos regem‑se pela lei do país em que o contraente que deve efetuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual. Noutros casos, o contrato rege‑se pela lei do país com o qual apresenta a conexão mais estreita (artigo 4.°, n.os 3 e 4).
8. Os artigos 5.° a 8.° têm por objeto outros tipos específicos de contrato. O artigo 7.° é relativo à lei aplicável aos contratos de seguro. O artigo 7.°, n.° 3, dispõe que, no que respeita aos contratos visados por esta disposição, as partes só podem escolher certas leis nos termos do artigo 3.° Entre estas leis contam‑se a lei do país em que se situa o risco no momento da celebração do contrato [artigo 7.°, n.° 3, alínea a)] e a lei do país em que o tomador do seguro tiver a sua residência habitual [artigo 7.°, n.° 3, alínea b)]. O artigo 7.°, n.° 4, estabelece normas adicionais para os contratos de seguro que cubram riscos relativamente aos quais um Estado‑Membro imponha a obrigação de seguro (13).
9. O artigo 15.° tem por epígrafe «Sub‑rogação legal» e dispõe: «Sempre que, por força de um contrato, uma pessoa (‘o credor’) tenha direitos relativamente a outra pessoa (‘o devedor’), e um terceiro tenha a obrigação de satisfazer o direito do credor ou tenha efetivamente satisfeito esse direito em cumprimento dessa obrigação, a lei aplicável à obrigação do terceiro determina se e em que medida este pode exercer os direitos do credor contra o devedor, de acordo com a lei que regula as suas relações.»
10. Nos termos do artigo 16.°, «[s]e o credor tiver um direito contra vários devedores, responsáveis pelo mesmo direito, e se um deles já tiver satisfeito total ou parcialmente o direito, a lei que regula a obrigação do devedor para com o credor é igualmente aplicável ao direito de regresso do devedor contra os outros devedores. Os outros devedores podem invocar os meios de defesa que possam opor ao credor, na medida do permitido pela lei aplicável às suas obrigações para com o credor.»
Regulamento Roma II
11. O Regulamento Roma II é aplicável «em situações que envolvam um conflito de leis, às obrigações extracontratuais em matéria civil e comercial» (14).
12. O capítulo II tem por epígrafe «Responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco». De acordo com a regra geral estabelecida no artigo 4.°, n.° 1, «a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indiretas desse facto». As normas aplicáveis a obrigações extracontratuais específicas constam dos artigos 5.° a 12.° (15).
13. O artigo 18.° prevê a possibilidade de a vítima demandar diretamente a seguradora do responsável. Dispõe: «O lesado pode demandar diretamente o segurador do responsável pela reparação, se a lei aplicável à obrigação extracontratual ou a lei aplicável ao contrato de seguro assim o previr.»
14. O capítulo V estabelece certas normas comuns, incluindo disposições relativas à sub‑rogação (artigo 19.°) e à responsabilidade múltipla (artigo 20.°). A redação destas disposições é idêntica à dos artigos 15.° e 16.° do Regulamento Roma I.
Diretiva 2009/103
15. A Diretiva 2009/103 codifica as diretivas relativas ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis. Por força desta diretiva, os veículos cobertos por um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel devem estar seguros quando circulam em toda a União Europeia. São relevantes os considerandos seguintes da diretiva. De acordo com o considerando 12, a obrigação dos Estados‑Membros de preverem a cobertura pelo seguro constitui um elemento importante para assegurar a proteção das vítimas. O considerando 26 dispõe: «No interesse do segurado, é conveniente que cada apólice de seguro garanta, através de um prémio único em cada um dos Estados‑Membros, a cobertura exigida pela sua legislação ou a cobertura exigida pela legislação do Estado‑Membro de estacionamento habitual, sempre que esta última for superior».
16. O termo «veículo» é definido como «qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados» (16).
17. Segundo o princípio geral estabelecido no artigo 3.°, cada Estado‑Membro deve adotar todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro (17).
18. O artigo 14.° dispõe:
«Os Estados‑Membros tomam todas as medidas necessárias para garantir que qualquer apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos:
a) Abranja, com base num prémio único e durante todo o período de vigência do contrato de seguro, a totalidade do território da Comunidade, incluindo as estadias do veículo noutro Estado‑Membro durante o período de vigência contratual; e
b) Garanta, com base no mesmo prémio único, em cada um dos Estados‑Membros, a cobertura exigida pela respetiva legislação ou a cobertura exigida pela legislação do Estado‑Membro em que o veículo tiver o seu estacionamento habitual, sempre que esta última for superior».
Direito lituano
19. O artigo 16.° da Lei n.° 1X‑378, de 14 de junho de 2001, relativa ao seguro obrigatório de responsabilidade civil respeitante à circulação de veículos automóveis tem por epígrafe «Princípios que regem a indemnização». O artigo 16.°, n.° 1, impõe à seguradora responsável ou ao Serviço Nacional de Seguros o pagamento de uma indemnização se o utilizador do veículo automóvel incorrer em responsabilidade civil por danos causados a terceiro. A indemnização deve ser paga em conformidade com a legislação que regula o seguro obrigatório de responsabilidade civil respeitante à circulação de veículos automóveis do Estado em que ocorreu o acidente rodoviário. Nos termos do artigo 16.°, n.° 5, a regra geral é a de que a indemnização dos danos causados por um veículo rebocado deverá ser paga ao abrigo do contrato de seguro que cobre o veículo rebocador, caso os dois veículos estejam acoplados no momento do acidente. Só há lugar ao pagamento de uma indemnização ao abrigo do contrato que cobre o veículo rebocado se os dois veículos se tiverem separado e os danos causados gerarem responsabilidade civil por parte do utilizador do veículo rebocado.
Direito alemão
20. O órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑475/14 explica que o direito lituano e o direito alemão aplicam princípios diferentes à repartição da responsabilidade entre as seguradoras do veículo rebocador e do veículo rebocado quando os danos tenham sido causados num acidente rodoviário pelos veículos utilizados conjuntamente. No que respeita ao direito lituano, a situação é a descrita anteriormente. Porém, segundo o direito alemão, cada uma das seguradoras é responsável pelo pagamento de 50% da indemnização dos danos causados pelo conjunto de veículos, independentemente de o veículo rebocado se ter separado do veículo rebocador durante o acidente, salvo acordo em contrário dos segurados (18). Além disso, existem diferenças entre o direito lituano e o direito alemão quanto ao prazo de prescrição para o exercício do direito de regresso.
Factos, tramitação processual e questões prejudiciais
Processo C‑359/14
21. Em 1 de setembro de 2011, na zona de Mannheim (Alemanha), um veículo trator ao qual estava acoplado um reboque, ao inverter a marcha numa estrada estreita, saiu da via e capotou, ocasionando danos no montante de 2 247,45 EUR (7 760,02 LTL). A polícia de Cochem (Alemanha) apurou que a responsabilidade pelo acidente e pelos danos causados cabia ao condutor do veículo trator. À data do acidente, a responsabilidade civil do proprietário ou do utilizador legal do veículo trator estava coberta pelo contrato de seguro obrigatório celebrado com a ERGO SE (a seguir «ERGO»), enquanto o reboque estava seguro por uma sucursal da If P&C Insurance AS (a seguir «If P&C»). Ambas as seguradoras exercem a sua atividade habitual na Lituânia. A ERGO pagou uma indemnização pelos danos resultantes do acidente. Seguidamente, propôs uma ação judicial na Lituânica, na qual alegou que a If P&C era solidariamente responsável pelos danos causados.
22. O Vilniaus miesto apylinkės teismas explica que o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas declarou que a relação jurídica entre a seguradora de um veículo rebocador e a seguradora de um veículo rebocado, quando seja suscitada a questão da existência de um direito de regresso da primeira seguradora contra a segunda, tem natureza contratual. Contudo, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto a esta posição, dado que os conceitos de relação contratual e relação extracontratual têm natureza autónoma no direito da União. Além disso, não existe nenhum contrato escrito ou acordo verbal entre as duas seguradoras. Nessas circunstâncias, também não é claro se a lei aplicável ao presente caso (a lei alemã ou a lei lituana) deve ser determinada de acordo com o Regulamento Roma II.
Processo C‑475/14
23. Em 21 de janeiro de 2011, ocorreu um acidente rodoviário na Alemanha, no qual um trator acoplado a um reboque causou danos materiais a um terceiro. Na ocasião do acidente, a responsabilidade civil do proprietário ou do utilizador legal do veículo trator estava coberta pela sucursal lituana da AAS Gjensidige Baltic (a seguir «Gjensidige Baltic»), enquanto o reboque estava seguro pela UAB DK PZU Lietuva (a seguir «UAB»). Na sequência de uma reclamação apresentada pelos representantes alemães da vítima, a Gjensidige Baltic pagou uma indemnização no valor de 1 254,36 EUR (4 331,05 LTL). Posteriormente, a Gjensidige Baltic procurou reaver metade daquela indemnização [ou seja, 672,02 EUR (2 165,53 LTL)] junto da seguradora do reboque. Naquele contexto, surgiu uma disputa entre ambas quanto à lei (alemã ou lituana) aplicável ao direito de regresso da Gjensidige Baltic, bem como quanto à questão de saber se se a seguradora tinha responsabilidade exclusiva ou solidária com a UAB.
24. O Vilniaus miesto apylinkės teismas deu provimento ao pedido deduzido pela Gjensidige Baltic, tendo considerado que, uma vez que os danos resultantes do acidente rodoviário tinham ocorrido na Alemanha, a lei aplicável à obrigação extracontratual decorrente da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco era a lei alemã, em conformidade com o disposto no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II. Essa decisão foi anulada pelo Vilniaus apygardos teismas (Tribunal Regional de Vílnius). Posteriormente, a Gjensidige Baltic interpôs recurso de cassação no Lietuvos Aukščiausiasis Teismas. Este último considerou que o litígio se prende sobretudo com a qualificação da relação jurídica entre as seguradoras do veículo rebocador e do veículo rebocado, bem como com a determinação da lei (alemã ou lituana) aplicável a essa relação jurídica.
25. O órgão jurisdicional de reenvio entende que é importante determinar se o artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103 deve ser considerado como uma norma que define a lei aplicável não apenas em casos relacionados com a proteção das vítimas de acidentes rodoviários, mas também no contexto de uma ação de regresso proposta por uma seguradora no seguimento de um acidente rodoviário que envolva o veículo rebocador e o veículo rebocado utilizados conjuntamente.
26. Por conseguinte, nestes dois processos, foram submetidas ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial, as questões abaixo enunciadas.
No processo C‑359/14, o Vilniaus miesto apylinkės teismas submete as seguintes questões:
«1. Há que interpretar o artigo 4.°, n.° 4, do [Regulamento Roma I], nos termos do qual ‘[c]aso a lei aplicável não possa ser determinada nem em aplicação do n.° 1 nem do n.° 2, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita’, no sentido de que a situações como a do caso em apreço deve ser aplicada a lei alemã?
2. Em caso de resposta negativa à primeira questão, deve o princípio consagrado no artigo 4.° do [Regulamento Roma II] ser interpretado no sentido de que, em situações como a do caso em apreço, a lei aplicável ao litígio entre a seguradora do trator e a seguradora do reboque deve ser determinada de acordo com a lei do país em que ocorreu o dano causado pelo acidente rodoviário?»
No processo C‑475/14, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas submete as seguintes questões:
«1. O artigo 14.°, alínea b), da [Diretiva 2009/103] estabelece uma norma de conflitos que deve ser aplicada ratione personae não só às vítimas dos sinistros rodoviários como também às seguradoras do veículo responsável pelos danos causados no sinistro, para efeitos de determinação da lei aplicável às relações entre elas, e tem a natureza de norma especial em relação às normas sobre a lei aplicável previstas nos [Regulamentos Roma I e Roma II]?
2. Se a resposta à primeira questão for negativa, importa determinar se as relações jurídicas entre as seguradoras no presente caso se enquadram no conceito de ‘obrigações contratuais’ na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do [Regulamento Roma I]. Se as relações jurídicas entre as seguradoras se enquadrarem no conceito de ‘obrigações contratuais’, […] essas relações estão abrangidas na categoria dos contratos de seguro (relações jurídicas) e […] a lei que lhes é aplicável deve ser determinada em conformidade dom o artigo 7.° do [Regulamento Roma I][?].
3. Se a resposta às duas primeiras questões for negativa, importa determinar se, no caso de uma ação de regresso, as relações jurídicas entre as seguradoras dos veículos utilizados em conjunto se enquadram no conceito de «obrigação extracontratual» na aceção do [Regulamento Roma II] e se essas relações devem ser tratadas como relações jurídicas derivadas, resultantes do sinistro rodoviário (facto danoso), para efeitos de determinação da lei aplicável em conformidade com o artigo 4.°, n.° 1, do [Regulamento Roma II]. Num caso como o presente, devem as seguradoras dos veículos utilizados em conjunto ser tratadas como devedores responsáveis pelo mesmo direito na aceção do artigo 20.° do [Regulamento Roma II], e deve a lei aplicável às relações entre elas ser determinada em conformidade com essa disposição [?]»
27. No processo C‑359/14, foram apresentadas observações escritas pela ERGO, pela If P&C, pelos Governos alemão e lituano e pela Comissão Europeia. No processo C‑475/14, foram apresentadas observações escritas pela Gjensidige Baltic, pela Lituânia e pela Comissão. Os dois processos foram apensos para efeitos da fase oral e do acórdão. Porém, não foi requerida nem realizada audiência.
Apreciação
Observação preliminar
28. A If P&C e o Governo lituano mencionam que a Lituânia é um dos Estados signatários da Convenção da Haia sobre a lei aplicável em matéria de acidentes de circulação rodoviária (19). No entanto, o artigo 2.°, n.° 5, dessa convenção dispõe que a mesma não é aplicável a ações e a sub‑rogações respeitantes a seguradoras. Assim, a convenção não é relevante para determinar a lei aplicável no presente caso.
Diretiva 2009/103
29. No processo C‑475/14, o Lietuvos Aukščiausiasis Teismas pretende saber, com a sua primeira questão, se o artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103 estabelece uma norma de conflito especificamente aplicável às ações de regresso. Essa questão é igualmente relevante para o processo C‑359/14, embora não tenha sido suscitada pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas.
30. A Gjensidige Baltic alega que o artigo 14.°, alínea b), estabelece uma lex specialis.
31. Não subscrevo este entendimento.
32. Resulta claramente da redação e dos objetivos da diretiva que o artigo 14.°, alínea b), não estabelece normas especiais para determinar a lei aplicável a uma ação de regresso entre seguradoras.
33. Em primeiro lugar, conforme observa justificadamente a Comissão, a diretiva não harmoniza as normas relativas à determinação da lei aplicável em litígios respeitantes a acidentes de viação. O objetivo geral da diretiva é antes assegurar a proteção das vítimas de acidentes, garantindo a cobertura pelo seguro (20).
34. Em segundo lugar, as alíneas a) e b) do artigo 14.° devem ser lidas em conjunto. No que respeita às apólices de seguro automóvel, o artigo 14.° exige que os Estados‑Membros assegurem a cobertura da totalidade do território da União Europeia durante a vigência do contrato com base num um prémio único e que garantam, com base nesse mesmo prémio, em cada um dos Estados‑Membros, a cobertura exigida pela respetiva legislação ou a cobertura exigida pela legislação do Estado‑Membro em que o veículo tiver o seu estacionamento habitual, sempre que esta última seja superior (21). O texto incide exclusivamente sobre o âmbito territorial e o nível da cobertura que a seguradora é obrigada a proporcionar, a fim de assegurar uma proteção adequada das vítimas de acidentes rodoviários.
35. Assim, não é possível uma interpretação extensiva da disposição, no sentido de considerar que esta constitui uma norma especial para determinar a lei aplicável aos litígios entre seguradoras respeitantes a ações de regresso. Em termos muito simples, nem o texto nem a finalidade da diretiva corroboram essa interpretação.
Observações gerais sobre os Regulamentos Roma I e Roma II
36. As partes defendem teses diferentes quanto à questão de saber se a lei aplicável à ação de regresso deve ser determinada de acordo com as normas do Regulamento Roma I ou do Regulamento Roma II. No essencial, a posição adotada por cada uma delas depende da sua qualificação jurídica da relação que está na origem da ação de regresso como contratual (os contratos de seguro) ou extracontratual (o acidente rodoviário).
37. No processo C‑359/14, três partes (If P&C, Alemanha e Comissão) alegam que, uma vez que a ação de regresso tem natureza contratual porque tem origem (a) no contrato entre o tomador do seguro e a seguradora do veículo rebocador e (b) no contrato entre o tomador do seguro e a seguradora do veículo rebocado. Consequentemente, a lei aplicável deve ser determinada em conformidade com o Regulamento Roma I, pelo que são aplicáveis as normas lituanas. A If P&C considera que a situação é regulada pelo artigo 7.° do Regulamento Roma I, que diz concretamente respeito aos contratos de seguro. A Alemanha entende que é aplicável o artigo 16.° do Regulamento Roma I, relativo à pluralidade de devedores.
38. A Comissão salienta que, no contexto do artigo 5.° da Convenção de Bruxelas, o conceito de «matéria extracontratual» é «residual», na medida em que surge após a definição do conceito de «matéria contratual». A Comissão alega que o direito da seguradora está abrangido pelo âmbito de aplicação dos artigos 15.° e 16.° do Regulamento Roma I. Decorre do artigo 16.° («Pluralidade de devedores») que, se o credor tiver um direito contra vários devedores responsáveis pelo mesmo direito, não é necessário que exista uma relação contratual entre os próprios devedores. Por conseguinte, para que uma situação que envolva uma pluralidade de devedores esteja abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento Roma I, basta que exista uma relação contratual entre cada devedor e o respetivo credor.
39. A ERGO defende a aplicabilidade do Regulamento Roma II. O acidente rodoviário gera relações extracontratuais entre o responsável pelo acidente e a vítima. Consequentemente, de acordo com o artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II, a lei aplicável é a lei alemã e as normas relativas à pluralidade de devedores previstas no artigo 20.° do Regulamento Roma II (sob a epígrafe «Responsabilidade múltipla») regulam a ação de regresso. O Governo lituano alega que o conceito de obrigações extracontratuais deve ser objeto de uma interpretação ampla e que a relação entre as seguradoras se assemelha mais a uma relação extracontratual.
40. No processo C‑475/14, a Gjensidige Baltic sustenta que a relação jurídica entre a seguradora do veículo rebocador e a seguradora do veículo rebocado tem origem no acidente rodoviário e, como tal, está abrangida pelo Regulamento Roma II. Assim, o artigo 20.° deste regulamento (que regula os casos de pluralidade de devedores) determina a lei aplicável à ação de regresso entre as seguradoras. A Lituânia e a Comissão adotam esta mesma posição no processo C‑359/14.
41. A ação de regresso proposta pela seguradora de um veículo rebocador contra a seguradora de um veículo rebocado tem origem numa obrigação contratual ou numa obrigação extracontratual? Afigura‑se existir consenso pelo menos quanto aos aspetos seguintes.
42. Em primeiro lugar, o conceito de «obrigações contratuais» não se encontra definido no Regulamento Roma I.
43. Em segundo lugar, deve existir coerência entre o âmbito de aplicação material dos Regulamentos Roma I e Roma II, bem como entre estes e o Regulamento Bruxelas I (22).
44. Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se as normas estabelecidas no Regulamento Roma I ou no Regulamento Roma II determinam a lei aplicável a uma situação em que duas ou mais seguradoras poderão ser conjunta e solidariamente responsáveis pela indemnização dos danos causados a uma vítima por um ato ilícito extracontratual praticado pelo tomador do seguro, e uma das seguradoras ressarciu integralmente esses danos e pede à(s) outra(s) uma quota‑parte da indemnização paga. Embora não seja possível aplicar automaticamente a jurisprudência relativa ao Regulamento Bruxelas I em matéria de competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões, o Tribunal de Justiça pode, ainda assim, retirar algumas orientações úteis dessa jurisprudência.
45. Na minha perspetiva, alguns dos princípios enunciados em seguida, resultantes da jurisprudência relativa ao Regulamento Bruxelas I, são relevantes para o presente caso.
46. Em primeiro lugar, os conceitos de «matéria contratual» e «matéria extracontratual» referidos, respetivamente, no artigo 5.°, pontos 1 e 3, do Regulamento Bruxelas I devem ser interpretados de forma autónoma, por referência à economia e à finalidade desse regulamento (23). O mesmo deverá acontecer com os conceitos de «obrigações contratuais» no Regulamento Roma I e de «obrigações extracontratuais» no Regulamento Roma II.
47. Em seguida, importa não esquecer que, uma vez que o Regulamento Bruxelas I substitui a Convenção de Bruxelas, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições desta última também é válida para as disposições do Regulamento Bruxelas I (24).
48. Além disso, é ponto assente que o conceito de «matéria contratual» na aceção do artigo 5.°, ponto 1, alínea a), do Regulamento Bruxelas I pressupõe a determinação de uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do demandante (25). Por conseguinte, o conceito de «obrigação contratual» no Regulamento Roma I deve ter o mesmo fundamento.
49. Por último, o conceito de «matéria extracontratual» na aceção do artigo 5.°, ponto 3, do Regulamento Bruxelas I abrange qualquer ação que tenha em vista o apuramento da responsabilidade do demandado e que não esteja relacionada com «matéria contratual» na aceção do artigo 5.°, ponto 1, alínea a), desse regulamento (26). Conforme observa, com razão, a Comissão, o conceito de matéria extracontratual é residual. A distinção entre obrigações contratuais reguladas pelo Regulamento Roma I e obrigações extracontratuais reguladas pelo Regulamento Roma II deve obedecer à mesma lógica.
50. Assim, começarei por analisar se uma ação de regresso de uma seguradora tem natureza essencialmente contratual. Só deverá ser considerada extracontratual se não se enquadrar naquela categoria.
Regulamento Roma I
51. No processo C‑359/14, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 4.°, n.° 4, do Regulamento Roma I determina a aplicação da lei alemã no processo principal (primeira questão). No processo C‑475/14, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se as relações jurídicas entre a seguradora do veículo trator e a seguradora do reboque dão origem a obrigações contratuais na aceção do artigo 1.° do Regulamento Roma I e, em caso afirmativo, se a lei aplicável deve ser determinada em conformidade com o disposto no artigo 7.° desse regulamento (segunda questão).
52. Há dois elementos que resultam claramente dos despachos de reenvio. Em primeiro lugar, não existe, em nenhum dos casos, um contrato entre as duas seguradoras. Consequentemente, as disposições sobre liberdade de escolha do artigo 3.° e as normas relativas à lei aplicável na falta de escolha previstas no artigo 4.° do Regulamento Roma I não podem ser aplicáveis, e o artigo 7.° também não é pertinente. Em segundo lugar, é inegável que existem contratos de seguro entre os tomadores do seguro dos veículos rebocador e rebocado e as respetivas seguradoras.
53. Tanto no processo C‑359/14 como no processo C‑475/14 nada indica que estes contratos são regulados pela lei lituana. Na medida em que é necessário determinar a lei aplicável aos contratos de seguro, essa determinação tem de ser efetuada em conformidade com os artigos 3.°, 4.° e/ou 7.° Embora esta seja, em última análise, uma matéria da competência do órgão jurisdicional nacional, os elementos ao dispor do Tribunal de Justiça apontam para a aplicabilidade da lei lituana (27).
54. No que respeita à ação de regresso da seguradora, considero, porém, que a lei aplicável deve ser determinada em conformidade com as normas do Regulamento Roma I pelos motivos que passo a expor.
55. O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Roma I dispõe que «[o] presente regulamento é aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis». Essa frase é suscetível de abranger situações como as que estão em causa nos processos principais.
56. O artigo 5.°, ponto 1, alínea a), do Regulamento Bruxelas I (28) tem uma redação ligeiramente diferente, fazendo referência a «matéria contratual». Contudo, o âmbito de aplicação material dos atos de harmonização do direito internacional privado em matéria civil e comercial deve ser coerente (29). O significado atribuído ao conceito de «obrigações contratuais» no artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Roma I determina o âmbito de aplicação material desse regulamento. Por conseguinte, é legítimo não recurso à jurisprudência relativa ao Regulamento Bruxelas I.
57. O Tribunal de Justiça afirmou que, embora o artigo 5.°, ponto 1, alínea a), do Regulamento Bruxelas I não exija a celebração de um contrato, é, contudo, indispensável identificar uma obrigação para o aplicar, dado que a competência jurisdicional, por força desta disposição, é fixada em função do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deve ser cumprida. A norma de competência especial estabelecida no artigo 5.°, ponto 1, alínea a) «pressupõe a determinação de uma obrigação jurídica livremente consentida por uma parte perante a outra e na qual se baseia a ação do demandante» (30). Interpretar essa disposição sem estabelecer tal requisito seria ir além do previsto pelo Regulamento Bruxelas I.
58. Considero que, no presente caso, esses critérios para determinar a existência de uma «matéria contratual» (e, necessariamente, a existência de «obrigações contratuais») estão preenchidos. Cada seguradora está vinculada por um contrato celebrado com o respetivo tomador do seguro, que gera obrigações mútuas. Entre as obrigações da seguradora figura a cobertura da responsabilidade civil do tomador do seguro. As obrigações do tomador do seguro incluem o pagamento do prémio de seguro. Nada indica que essas obrigações não sejam livremente assumidas por uma parte perante a outra. Em resumo, estamos claramente perante uma «matéria contratual» e «obrigações contratuais» no que respeita a essas partes.
59. A fim de qualificar os direitos no cerne dos processos principais, poderá revelar‑se útil uma análise mais aprofundada das relações entre as diferentes partes envolvidas em termos mais abstratos.
60. Imagine‑se que ocorre um acidente rodoviário, no qual estão envolvidos um veículo rebocador e um veículo rebocado. O acidente causa danos a uma vítima, que não é, de modo nenhum, responsável pelo acidente. Para efeitos deste exemplo, chamarei A ao tomador do seguro do veículo rebocador, B ao tomador do seguro do veículo rebocado, X à vítima do acidente rodoviário, C à seguradora do veículo rebocador e D à seguradora do veículo rebocado. A e B causaram e/ou são responsáveis pelos danos e lesões sofridos por X. Por conseguinte, X tem um direito extracontratual perante A e B fundado num facto ilícito.
61. A e B têm, ambos, uma relação contratual com as respetivas seguradoras C e D. É paga uma indemnização a X ao abrigo desses contratos. No entanto, ainda que C e/ou D paguem diretamente a indemnização a X, não existe nenhuma relação contratual entre X, por um lado, e C e/ou D, por outro. A obrigação de pagamento tem origem no acidente rodoviário e nas participações do sinistro efetuadas ao abrigo das apólices de seguro.
62. O facto de o pagamento ser efetuado aos tomadores do seguro (A e B) ou diretamente à vítima (X) não é relevante. Uma vez que a obrigação de pagamento tem origem contratual, a identidade do destinatário do pagamento (quer seja o tomador do seguro, a vítima ou a seguradora do veículo rebocador) não altera a natureza da obrigação. Como tal, o centro de gravidade da obrigação de indemnização situa‑se na obrigação contratual (da seguradora de indemnizar o tomador do seguro) e não na obrigação extracontratual do infrator perante a vítima resultante do acidente rodoviário. Se o infrator não estivesse seguro, seria ele mesmo responsável extracontratualmente pela indemnização dos danos sofridos pela vítima. Na falta de um contrato de seguro, não poderia ser imputada qualquer responsabilidade às seguradoras. Daqui resulta que a ação de regresso proposta por uma seguradora contra a outra (no meu exemplo, C contra D) tem origem nos contratos de seguro, está, por esse motivo, intimamente ligada às obrigações contratuais das duas seguradoras perante os respetivos tomadores do seguro, e, consequentemente, está abrangida pelo Regulamento Roma I.
63. Os artigos 15.° («Sub‑rogação legal») e 16.° («Pluralidade de devedores») contribuem para esclarecer se a lei aplicável à ação de regresso é determinada em conformidade com o Regulamento Roma I?
64. No meu entender, a resposta é negativa.
65. O artigo 15.° dispõe que a lei aplicável à obrigação de um terceiro de satisfazer o direito de um credor determina se, e em que medida, esse terceiro pode exercer os direitos do credor contra o devedor, de acordo com a lei que regula as suas relações. O artigo 16.° diz respeito a situações em que um credor tem um direito contra vários devedores, responsáveis pelo mesmo direito.
66. Começo por observar que o facto de essas disposições se encontrarem reproduzidas nos artigos 19.° e 20.° do Regulamento Roma II indica que não podem ser consideradas decisivas para distinguir o que é contratual (e, portanto, regulado pelo Regulamento Roma I) do que é extracontratual (e, como tal, regulado pelo Regulamento Roma II (31).
67. Lamentavelmente, o preâmbulo do Regulamento Roma I não fornece qualquer explicação sobre a origem ou a finalidade do artigo 15.° ou do artigo 16.° A redação do artigo 15.° do Regulamento Roma I é idêntica à do artigo 13.°, n.° 1, da Convenção de Roma. O relatório Giuliano e Lagarde refere que a «‘sub‑rogação’ implica a atribuição dos direitos do credor à pessoa que, estando obrigada ao pagamento da dívida juntamente com outros devedores ou em nome destes, tinha um interesse em satisfazer essa dívida» e que, uma vez que a convenção só é aplicável a obrigações contratuais, essa regra é unicamente válida para os direitos de natureza contratual (32). Os autores do relatório explicam que as normas sobre sub‑rogação não se aplicam à sub‑rogação legal nos casos em que a dívida a satisfazer tenha origem num facto ilícito extracontratual (por exemplo, quando a seguradora substitui o segurado na titularidade dos direitos perante a pessoa que causou os danos). Um exemplo muito comum de sub‑rogação legal é‑nos dado pela situação em que um credor concede um empréstimo a um devedor sob garantia. Se o garante (o terceiro) pagar integralmente a dívida ao credor, fica sub‑rogado nos direitos do credor contra o devedor.
68. Porém, a situação nos dois processos nacionais aqui em causa não é tão simples como a que envolve apenas um credor, um devedor e um garante.
69. O artigo 16.° do Regulamento Roma I preserva a continuidade da lei aplicável quando existam vários devedores no contexto das obrigações contratuais. Porém, não ajuda a determinar se uma certa obrigação inicial tem natureza contratual ou extracontratual.
70. Consequentemente, no meu entender, nenhuma das referidas disposições contribui para esclarecer se a ação de regresso está abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento Roma I.
71. Tendo em conta a minha análise anterior, concluo que, se duas ou mais seguradoras forem conjunta e solidariamente responsáveis pela indemnização dos prejuízos, danos ou lesões sofridos por uma vítima devido a uma ação ou omissão ilícita de natureza extracontratual do(s) respetivo(s) tomador(es) do seguro, e se uma seguradora tiver pago essa indemnização e pretender junto obter uma contribuição da(s) outra(s) seguradora(s), a obrigação da seguradora de indemnizar o tomador do seguro ou de indemnizar a vítima em nome do tomador do seguro deve ser qualificada como contratual na aceção do Regulamento Roma I. Quer a seguradora pague diretamente a indemnização à vítima, quer uma seguradora pague uma quota‑parte dessa indemnização à outra seguradora, a natureza contratual da obrigação de indemnizar não se altera. Consequentemente, a lei aplicável deve ser determinada em conformidade com o Regulamento Roma I.
Regulamento Roma II
72. Concluí que a ação de regresso da seguradora está abrangida pelo Regulamento Roma I. Assim sendo, não há, em bom rigor, necessidade de analisar o Regulamento Roma II. No entanto, por uma questão de exaustividade, fá‑lo‑ei sucintamente.
73. No meu entender, a ação de regresso da seguradora não está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Roma II pelos motivos que passo a expor.
74. Em primeiro lugar, as obrigações extracontratuais são uma categoria residual. Da análise que fiz nos n.os 58 a 62 e da conclusão que expus no n.° 71 supra decorre que os processos principais dizem respeito a obrigações contratuais. Por conseguinte, o artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento Roma II não é aplicável.
75. Em segundo lugar, a categoria genérica das obrigações extracontratuais referida no artigo 4.° do Regulamento Roma II não pode determinar a lei aplicável, dado que não ocorreu um facto danoso entre a seguradora do veículo rebocador e a seguradora do veículo rebocado. A seguradora do veículo rebocador não causou danos à seguradora do veículo rebocado nem esta causou danos àquela. Assim sendo, não existe nenhuma obrigação extracontratual entre as duas seguradoras. Embora o acidente rodoviário e os danos por ele causados à vítima tenham efetivamente gerado direito(s) ao abrigo do(s) contrato(s) de seguro, as seguradoras não foram as protagonistas desse ato e estão afastadas do mesmo. A sua única ligação com esse ato verifica‑se através das obrigações estipuladas no(s) contrato(s) de seguro celebrado(s) com o(s) respetivo(s) tomador(es) do seguro (33). Segundo jurisprudência constante, «[…] a responsabilidade extracontratual só pode ser tomada em conta se puder ser estabelecido um nexo de causalidade entre o dano e o facto que o originou» (34).
76. Em terceiro lugar, a ação de regresso da seguradora não se enquadra em nenhuma das categorias de obrigações extracontratuais reguladas pelos artigos 5.° a 12.° do Regulamento Roma II.
77. E quanto ao artigo 18.°, que prevê a escolha da lei quando «o lesado» (ou seja, a vítima) pretenda demandar diretamente a seguradora do infrator «[…] se a lei aplicável à obrigação extracontratual ou a lei aplicável ao contrato de seguro assim o previr»?
78. Embora nenhum dos considerandos ajude a esclarecer o sentido do artigo 18.°, é possível retirar algumas orientações da Exposição de Motivos da proposta apresentada pela Comissão, relativa ao artigo 14.° (que, posteriormente, deu origem ao artigo 18.°), que dispõe que «[o] artigo 14.° determina a lei aplicável à questão de saber se a pessoa lesada está autorizada a exercer uma ação direta contra o segurador da pessoa cuja responsabilidade é invocada. A regra proposta instaura um equilíbrio razoável entre os interesses em presença no sentido de proteger a pessoa lesada, a quem concede a faculdade de escolher, mas limitando a escolha às duas leis cuja aplicação o segurador deveria legitimamente prever, ou seja, a lei aplicável à obrigação extracontratual, por um lado, e a lei aplicável ao contrato de seguro, por outro. Em todos os casos, o alcance das obrigações do segurador é estabelecido pela lei aplicável ao contrato de seguro. À semelhança do artigo 7.° relativo aos danos ambientais, a formulação adotada permite evitar dúvidas na hipótese de a vítima não ter exercido o seu direito de opção.»
79. Creio que o artigo 18.° se limita a dar à vítima a possibilidade de optar entre demandar diretamente a seguradora (ao invés do autor do dano), sem alterar os parâmetros básicos da situação. A possibilidade de a vítima demandar o autor do dano é regulada pela lei aplicável às obrigações extracontratuais. A obrigação legal da seguradora de se substituir ao autor do dano no pagamento de uma indemnização dependerá das condições estipuladas no contrato de seguro, que deverão ser interpretadas de acordo com a lei aplicável ao contrato.
80. Confirma‑se assim a minha conclusão de que o Regulamento Roma II não é aplicável e de que, consequentemente, as regras estabelecidas no artigo 20.° sobre responsabilidade múltipla não são relevantes para determinar a lei aplicável nos processos C‑359/14 e C‑475/14.
Conclusão
81. À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas no processo C‑359/14 e pelo Lietuvos Aukščiausiasis Teismas no processo C‑475/14 nos seguintes termos:
– O artigo 14.°, alínea b), da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade não estabelece uma norma especial para determinar a lei aplicável.
– Se duas ou mais seguradoras forem conjunta e solidariamente responsáveis pela indemnização dos prejuízos, danos ou lesões sofridos por uma vítima devido a uma ação ou omissão ilícita de natureza extracontratual do(s) respetivo(s) tomador(es) do seguro, e se uma seguradora tiver pago essa indemnização e pretender obter uma contribuição da(s) outra(s) seguradora(s), a obrigação da seguradora de indemnizar o tomador do seguro ou de indemnizar a vítima em nome do tomador do seguro deve ser qualificada como contratual na aceção do artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). Quer a seguradora pague diretamente a indemnização à vítima quer uma seguradora pague uma quota‑parte dessa indemnização à outra seguradora, a natureza contratual da obrigação de pagar a indemnização não se altera. Consequentemente, a lei aplicável deve ser determinada em conformidade com o Regulamento Roma I.
1 – Língua original: inglês.
2 – Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO L 177, p. 6).
3 – Regulamento (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II) (JO L 199, p. 40).
4 – Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 263, p. 11) (a seguir «Diretiva 2009/103» ou «diretiva»).
5 – Convenção relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186; versão consolidada em JO 1998 C 27, p. 1.
6 – Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001 L 12, p. 1) (a seguir «Regulamento Bruxelas I»). Esse regulamento não é aplicável à Dinamarca (artigo 1.°, n.° 3).
7 – Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (JO 1980, L 266, p.1; EE 01 F3 p. 36).
8 – V. considerando 6 dos Regulamentos Roma I e Roma II.
9 – V. considerando 7 dos Regulamentos Roma I e Roma II.
10 – V. considerando 40 e artigo 23.° do Regulamento Roma I. V. também considerando 35 e artigo 27.° do Regulamento Roma II.
11 – Artigo 1.°, n.° 1.
12 – Artigo 3.°, n.° 1.
13 – Os elementos apresentados ao Tribunal de Justiça não contêm informações suficientemente detalhadas sobre a legislação lituana e alemã que regula o seguro automóvel obrigatório que me permitam comentar utilmente o papel que o artigo 7.°, n.° 4, poderá desempenhar.
14 – Artigo 1.°, n.° 1.
15 – Porém, essas normas não incluem ações destinadas a obter direitos de regresso como os que decorrem de um acidente rodoviário.
16 – Artigo 1.°, n.° 1. V. acórdão Vnuk, C‑162/13, EU:C:2014:2146.
17 – Nos termos do artigo 5.°, os Estados‑Membros podem prever uma derrogação a essa obrigação relativamente a certas pessoas, singulares ou coletivas, de direito público ou privado, verificadas certas condições. Nada nos elementos apresentados ao Tribunal de Justiça indica que o artigo 5.° é relevante para os dois processos principais.
18 – No despacho de reenvio no processo C‑475/14, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência ao acórdão n.° IV 279/08, de 27 de outubro de 2010, do Tribunal Federal alemão. Esse caso dizia respeito a veículos cobertos por contratos de seguro alemães, sujeitos ao regime de seguros alemão. Trata‑se de uma situação diferente daquela que está em causa no processo principal, que diz respeito a veículos com matrícula estrangeira, cobertos por contratos de seguro celebrados noutro Estado‑Membro.
19 – V. Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e documentos da 11.ª sessão de 1968 (Volume III, Acidentes de trânsito, p. 223).
20 – V. considerando 12 da diretiva.
21 – V. considerando 26 da diretiva.
22 – V. considerando 7 dos Regulamentos Roma I e Roma II. V. ainda acórdão ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.° 28.
23 – V. acórdão Brogsitter, C‑548/12, EU:C:2014:148, n.° 18 e jurisprudência aí referida.
24 – V. acórdão Brogsitter, C‑548/12, EU:C:2014:148, n.° 19 e jurisprudência aí referida.
25 – V. acórdão ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.° 33 e jurisprudência aí referida.
26 – V. ainda acórdão Brogsitter, C‑548/12, EU:C:2014:148, n.os 20 e 21. V. também acórdão ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.° 32 e jurisprudência aí referida.
27 – Possivelmente, por escolha expressa (artigo 3.°) ou, se assim não for, por o prestador de serviços (a seguradora) ou o tomador do seguro terem residência habitual na Lituânia [artigo 4.°, n.° 1, alínea b), e artigo 7.°, n.° 3, alínea b), respetivamente]. Também é provável que, à data da celebração do contrato, o risco se situasse na Lituânia [artigo 7.°, n.° 3, alínea a)]. Quanto à possível relevância do artigo 7.°, n.° 4, v. nota 13 supra.
28 – A regra geral estabelecida no Regulamento Bruxelas I é a de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado (artigo 2.°). O artigo 5.°, ponto 1, alínea a), do Regulamento Bruxelas I estabelece uma regra de competência especial, que constitui uma derrogação à referida regra geral: em matéria contratual, uma pessoa domiciliada num Estado‑Membro pode ser demandada perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação contratual.
29 – V. n.° 43 supra.
30 – V. acórdão Česká spořitelna, C‑419/11, EU:C:2013:165, n.os 46 e 47 e jurisprudência aí referida. V. também as minhas conclusões no processo Česká spořitelna, EU:C:2012:586, n.os 43 a 45.
31 – V. Exposição de Motivos da Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), apresentada pela Comissão, COM(2003)0427 final, p. 26.
32 – V. relatório de Mario Giuliano, professor da Universidade de Milão, e de Paul Lagarde, professor da Universidade de Paris, relativo à Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (JO 1980 C 282, p. 1), artigo 13.° («Sub‑rogação»).
33 – V. n.° 60 supra.
34 – V. acórdão ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.° 34 e jurisprudência aí referida.