Processo C-527/1

ECLI:EU:C:2012:417

ERSTE Bank Hungary Nyrt contra Magyar Állam e o.

«Cooperação judiciária em matéria civil — Processos de insolvência — Regulamento (CE) n.o 1346/2000 — Artigo 5.o, n.o 1 — Aplicação no tempo — Ação relativa a um direito real intentada num Estado não membro da União Europeia — Processo de insolvência intentado contra o devedor noutro Estado-Membro — Primeiro Estado passa a ser membro da União Europeia — Aplicabilidade»

Acórdão

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

5 de julho de 2012 ( *1 )

«Cooperação judiciária em matéria civil — Processos de insolvência — Regulamento (CE) n.o 1346/2000 — Artigo 5.o, n.o 1 — Aplicação no tempo — Ação relativa a um direito real intentada num Estado não membro da União Europeia — Processo de insolvência intentado contra o devedor noutro Estado-Membro — Primeiro Estado passa a ser membro da União Europeia — Aplicabilidade»

No processo C-527/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Legfelsőbb Bíróság (Hungria), por decisão de 26 de outubro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 15 de novembro de 2010, no processo

ERSTE Bank Hungary Nyrt

contra

Magyar Állam,

BCL Trading GmbH,

ERSTE Befektetési Zrt,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano (relator), presidente de secção, M. Ilešič, E. Levits, J.-J. Kasel e M. Berger, juízes,

advogado-geral: J. Mazák,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 27 de outubro de 2011,

vistas as observações apresentadas:

em representação do ERSTE Bank Hungary Nyrt, por T. Éless e L. Molnár, ügyvédek,

em representação de Bárándy és Társai Ügyvédi Iroda, por D. Bojkó, ügyvéd,

em representação do Komerční Banka as, por P. Lakatos, I. Sólyom, A. Ungár, P. Köves e B. Fazakas, ügyvédek,

em representação do Governo húngaro, por Z. Fehér, K. Szíjjártó e K. Veres, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por S. Centeno Huerta, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por A. Sipos e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 26 de janeiro de 2012,

profere o presente

Acórdão

1

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (JO L 160, p. 1, a seguir «regulamento»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo de insolvência intentado contra a BCL Trading GmbH (a seguir «BCL Trading»), uma sociedade de direito austríaco.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 2.o do Ato relativo às condições de adesão à União Europeia da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33, a seguir «ato de adesão»), enuncia:

«A partir da data da adesão, as disposições dos Tratados originários e os atos adotados pelas Instituições e pelo Banco Central Europeu antes da adesão vinculam os novos Estados-Membros e são aplicáveis nesses Estados nos termos desses Tratados e do presente Ato.»

4

Os considerandos 6, 11 e 23 a 25 do regulamento enunciam:

«(6)

De acordo com o princípio da proporcionalidade, o presente regulamento deve limitar-se às disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões diretamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas. Além disso, o presente regulamento deve conter disposições relativas ao reconhecimento dessas decisões e ao direito aplicável, que respeitam igualmente aquele princípio.

[…]

(11)

O presente regulamento reconhece que não é praticável instituir um processo de insolvência de alcance universal em toda a Comunidade, tendo em conta a grande variedade de legislações de natureza substantiva existentes. Nestas circunstâncias, a aplicabilidade exclusiva do direito do Estado de abertura do processo levantaria frequentemente dificuldades. Tal vale, por exemplo, para a grande diversidade das legislações sobre as garantias vigentes na Comunidade. […] O presente regulamento pretende ter essas circunstâncias em conta de dois modos diferentes: por um lado, devem ser previstas normas específicas em matéria de legislação aplicável no caso de direitos e relações jurídicas particularmente significativos (por exemplo, direitos reais e contratos de trabalho) e, por outro, deve igualmente admitir-se, a par de um processo de insolvência principal de alcance universal, processos nacionais que incidam apenas sobre os bens situados no território do Estado de abertura do processo.

[…]

(23)

O presente regulamento deve estabelecer, quanto às matérias por ele abrangidas, normas uniformes sobre o conflito de leis que substituam, dentro do respetivo âmbito de aplicação, as normas internas de direito internacional privado. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, deve aplicar-se a lei do Estado-Membro de abertura do processo (lex concursus). Esta norma de conflito de leis deve aplicar-se tanto aos processos principais como aos processos locais. A lex concursus determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência.

(24)

O reconhecimento automático de um processo de insolvência ao qual é geralmente aplicável a lei do Estado de abertura pode interferir com as normas a que obedece o comércio jurídico noutros Estados-Membros. Para proteger as expectativas legítimas e a segurança do comércio jurídico nos Estados-Membros que não o de abertura, deve prever-se uma série de derrogações à regra geral.

(25)

No caso dos direitos reais, sente-se uma particular necessidade de estabelecer um vínculo especial diverso do da lei do Estado de abertura, uma vez que esses direitos se revestem de substancial importância para o reconhecimento de créditos. Por conseguinte, o fundamento, a validade e o alcance de um direito real devem ser geralmente determinados pela lei do Estado em que tiver sido constituído o direito e não ser afetados pela abertura do processo de insolvência. O titular do direito real deve, pois, poder continuar a fazer valer esse direito à restituição ou liquidação do bem em causa. Quando haja bens que sejam objeto de direitos reais constituídos ao abrigo da legislação de um Estado-Membro, correndo, porém, o processo principal noutro Estado-Membro, o síndico deste processo pode requerer a abertura de um processo secundário na jurisdição em que foram constituídos os direitos reais, se o devedor aí tiver um estabelecimento. Não sendo aberto processo secundário, o excedente da venda dos bens abrangidos por direitos reais tem de ser entregue ao síndico do processo principal.»

5

O artigo 3.o do regulamento, que versa sobre a competência internacional, dispõe:

«1.   Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas coletivas é o local da respetiva sede estatutária.

2.   No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.

3.   Quando um processo de insolvência for aberto ao abrigo do disposto no n.o 1, qualquer processo de insolvência aberto posteriormente ao abrigo do disposto no n.o 2 constitui um processo secundário. Este processo deve ser um processo de liquidação.

[…]»

6

O artigo 4.o do regulamento, relativo à lei aplicável, prevê:

«1.   Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, a seguir designado ‘Estado de abertura do processo’.

2.   A lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. A lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente:

[…]

b)

Os bens de cuja administração ou disposição o devedor está inibido e o destino a dar aos bens adquiridos pelo devedor após a abertura do processo de insolvência;

[…]

f)

Os efeitos do processo de insolvência nas ações individuais, com exceção dos processos pendentes;

g)

Os créditos a reclamar no passivo do devedor e o destino a dar aos créditos nascidos após a abertura do processo de insolvência;

h)

As regras relativas à reclamação, verificação e aprovação dos créditos;

i)

As regras de distribuição do produto da liquidação dos bens, a graduação dos créditos e os direitos dos credores que tenham sido parcialmente satisfeitos, após a abertura do processo de insolvência, em virtude de um direito real ou por efeito de uma compensação;

[…]»

7

No que se refere aos direitos reais de terceiros, o artigo 5.o, n.o 1, do regulamento enuncia:

«A abertura do processo de insolvência não afeta os direitos reais de credores ou de terceiros sobre bens corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, quer sejam bens específicos, quer sejam conjuntos de bens indeterminados considerados como um todo, cuja composição pode sofrer alterações ao longo do tempo, pertencentes ao devedor e que, no momento da abertura do processo, se encontrem no território de outro Estado-Membro.»

8

No que concerne ao reconhecimento do processo de insolvência, o artigo 16.o do regulamento dispõe:

«1.   Qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.o, é reconhecida em todos os outros Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo.

A mesma regra é aplicável no caso de o devedor, em virtude da sua qualidade, não poder ser sujeito a um processo de insolvência nos restantes Estados-Membros.

2.   O reconhecimento de um processo referido no n.o 1 do artigo 3.o não obsta à abertura de um processo referido no n.o 2 do artigo 3.o por um órgão jurisdicional de outro Estado-Membro. Este último processo constitui um processo de insolvência secundário na aceção do capítulo III.»

9

O artigo 17.o, n.o 1, do regulamento, que trata dos efeitos do reconhecimento do processo de insolvência, tem a seguinte redação:

«A decisão de abertura de um processo referido no n.o 1 do artigo 3.o produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo, salvo disposição em contrário do presente regulamento e enquanto não tiver sido aberto nesse outro Estado-Membro um processo referido no n.o 2 do artigo 3.o»

10

O artigo 43.o do regulamento, que regula a aplicação no tempo do referido regulamento, prevê:

«O disposto no presente regulamento é aplicável apenas aos processos de insolvência abertos posteriormente à sua entrada em vigor. Os atos realizados pelo devedor antes da entrada em vigor do presente regulamento continuam a ser regidos pela legislação que lhes era aplicável no momento em que foram praticados.»

11

Por último, o artigo 47.o do regulamento dispõe:

«O presente regulamento entra em vigor em 31 de maio de 2002.»

Direito húngaro

12

As normas relativas a garantias financeiras, conforme aplicáveis ratione temporis ao processo principal, figuram nos §§ 270 e 271 da Lei n.o IV de 1959, que institui o Código Civil (Polgári törvénykönyvről szőlő 1959. évi IV. törvény).

13

O § 270 desta lei prevê:

«1.   Quando seja prestada uma garantia financeira para garantir o cumprimento de uma obrigação, o credor pode, em caso de não cumprimento do contrato ou de cumprimento inadequado, cobrar o seu crédito diretamente através das quantias prestadas em garantia.

2.   Pode ser constituída uma garantia financeira, sob a forma de dinheiro, de contas poupança ou de valores mobiliários. Se for constituída sobre outro bem, aplicar-se-ão as normas relativas ao penhor.

3.   É nula a garantia financeira constituída para garantir um crédito que não possa ser judicialmente reclamado. Esta regra não é aplicável à garantia financeira constituída para garantia do pagamento de um crédito já prescrito.

4.   A prescrição de um crédito não impede que o mesmo possa ser satisfeito através da garantia financeira constituída para garantir o respetivo pagamento.»

14

O § 271 da referida lei dispõe:

«1.   Uma garantia financeira só pode ser utilizada para satisfazer o pagamento do crédito. Qualquer derrogação a esta regra é nula.

2.   É restituído o objeto da garantia financeira se o contrato que lhe serve de base se extinguir, ou se tiver expirado o prazo de garantia sem que se tenha produzido o facto que justifique a satisfação do crédito através da garantia.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

15

O presente processo tem origem no litígio que opõe o ERSTE Bank Hungary Nyrt (a seguir «ERSTE Bank») ao Magyar Állam (Estado húngaro), à BCL Trading e à ERSTE Befektetési Zrt.

16

Em 8 de maio de 1998, o Postabank és Takarékpénztár rt (a seguir «Postabank») emitiu um crédito documentário a favor da BCL Trading.

17

Posteriormente, a BCL Trading cedeu esse crédito a vários bancos. Como o Postabank recusou o pagamento do montante correspondente a esse crédito aos referidos bancos, estes intentaram uma ação para pagamento do crédito cedido.

18

Em 9 de julho de 2003, a BCL Trading deu em garantia as ações do Postabank de que era titular, caso o crédito documentário se tornasse exigível e, por conseguinte, o Postabank tivesse de pagar os montantes correspondentes. As referidas ações foram, assim, objeto de uma garantia financeira.

19

Em 5 de dezembro de 2003, foi aberto um processo de insolvência contra a BCL Trading, com sede em Viena (Áustria), processo que foi publicado em 4 de fevereiro de 2004.

20

Quanto às ações do Postabank, detidas pela BCL Trading, que eram objeto da referida garantia financeira, o Legfelsőbb Bíróság ordenou ao Magyar Állam, em 6 de dezembro de 2005, que comprasse as referidas ações, uma vez que este último exercia uma influência determinante no Postabank, o que, em direito húngaro, lhe impunha uma obrigação de aquisição das ações do Postabank postas à venda pelos pequenos acionistas. Em cumprimento desta decisão, o Magyar Állam comprou essas ações pelo valor fixado pelo Legfelsőbb Bíróság e colocou sob depósito judicial o montante em numerário obtido em substituição das referidas ações previamente desmaterializadas.

21

Em 27 de janeiro de 2006, o ERSTE Bank, com sede em Budapeste (Hungria), que se sub-rogou nos direitos do Postabank, interpôs no Legfelsőbb Bíróság (Tribunal de Budapeste) recurso contra os recorridos no processo principal, para obter uma decisão declarativa de uma garantia financeira sobre o montante em dinheiro depositado judicialmente.

22

Na pendência deste recurso, em 8 de janeiro de 2007, o ERSTE Bank requereu igualmente a abertura, na Hungria, de um segundo processo de insolvência contra a BCL Trading, alegando que esta dispunha de um estabelecimento nesse país e que já tinha sido aberto na Áustria um processo de insolvência contra a mesma. Embora reconhecendo a aplicabilidade do regulamento, o Legfelsőbb Bíróság indeferiu esse pedido com fundamento em que o recorrente não tinha demonstrado que o devedor tinha, como exigido pelo artigo 3.o, n.o 2, deste regulamento, um estabelecimento na Hungria.

23

Em 7 de janeiro de 2009, o Fővárosi Bíróság considerou que, uma vez que já tinha sido aberto na Áustria um processo de insolvência contra a BCL Trading, a lei aplicável ao processo de insolvência e respetivos efeitos era a lei austríaca das falências. Ora, atendendo a que esta lei exclui a possibilidade de se intentar uma ação contra um operador económico em liquidação visando o património da massa falida, não podia ser intentada nenhuma ação contra a BCL Trading, na medida em que esta estava em liquidação. Nestas condições, o Fővárosi Bíróság proferiu um despacho de arquivamento do processo.

24

No seguimento do recurso interposto pelo ERSTE Bank contra esta decisão, em 4 de fevereiro de 2010, o Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal de Recurso de Budapeste), com base no artigo 4.o, n.o 1, do regulamento, confirmou o despacho proferido em primeira instância pelo Fővárosi Bíróság. Recordou igualmente que é ao abrigo do direito austríaco que se deve determinar se o ERSTE Bank pode obter uma decisão declarativa de uma garantia financeira.

25

O ERSTE Bank interpôs, então, um recurso de cassação no Legfelsöbb Bíróság, pedindo, a título principal, que se anulasse definitivamente o despacho de arquivamento e se ordenasse ao órgão jurisdicional de primeira instância que reexaminasse o pedido de abertura de um processo secundário de insolvência contra a BCL Trading. Além disso, alegou que o regulamento não era aplicável a este caso, uma vez que a decisão de iniciar o processo de insolvência contra a BCL Trading na Áustria tinha sido tomada antes da adesão da República da Hungria à União Europeia, o que, consequentemente, impossibilitava, por força do mesmo regulamento, que se considerasse que a referida sociedade estava em liquidação na Hungria.

26

Considerando que a decisão a tomar dependia da interpretação das disposições do regulamento, o Legfelsőbb Bíróság decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 5.o, n.o 1, do [regulamento] é aplicável a um processo judicial civil relativo à existência de um direito real [no caso, uma garantia financeira (óvadék)], se o Estado em que se encontravam o valor mobiliário que servia de garantia e, posteriormente, o montante em numerário que o substituiu, ainda não era membro da União Europeia no momento da abertura do processo de insolvência noutro Estado-Membro, embora já o fosse no momento da propositura da ação?»

Quanto à questão prejudicial

27

Com a sua questão, o Legfelsőbb Bíróság pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o artigo 5.o, n.o 1, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que é aplicável no âmbito de um processo judicial de direito civil relativo à existência de um direito real, concretamente uma garantia financeira, no caso de os bens a que o direito se refere, como uma quantia em dinheiro colocada em depósito judicial, estarem situados num Estado que ainda não era membro da União Europeia no momento da abertura do processo de insolvência num Estado-Membro, mas que já era membro no momento da propositura da ação que desencadeou o referido processo judicial.

28

Antes de responder a esta questão, há que dissipar as dúvidas, levantadas por algumas partes no presente processo, sobre a possibilidade de o próprio regulamento ser aplicável, ratione temporis, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal.

29

A este respeito, há que recordar, a título preliminar, que, nos termos do seu artigo 1.o, o regulamento é aplicável aos processos coletivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor, bem como a designação de um síndico.

30

Em conformidade com o artigo 43.o do regulamento, que regula a respetiva aplicação no tempo, o regulamento é aplicável apenas aos processos de insolvência abertos posteriormente à sua entrada em vigor, que, como precisa o artigo 47.o do mesmo regulamento, é fixada em 31 de maio de 2002.

31

Ora, resulta da decisão de reenvio que o processo de insolvência contra a BCL Trading foi aberto na Áustria, em 5 de dezembro de 2003.

32

Nestas condições, não há dúvida de que este processo foi aberto num Estado-Membro, posteriormente a 31 de maio de 2002, e que, consequentemente, está abrangido pelo âmbito de aplicação do regulamento.

33

Há, também, que sublinhar que resulta da leitura conjugada dos artigos 16.°, n.o 1, e 17.°, n.o 1, do regulamento que a decisão de abertura de um processo de insolvência num Estado-Membro é reconhecida em todos os outros Estados-Membros, a partir do momento em que produz os seus efeitos no Estado de abertura do processo, e produz, sem mais formalidades, em qualquer outro Estado-Membro, os efeitos que a lei do Estado de abertura do processo lhe atribui (acórdão de 21 de janeiro de 2010, MG Probud Gdynia, C-444/07, Colet., p. I-417, n.o 26).

34

Como resulta do considerando 22 do regulamento, a regra de prioridade definida no referido artigo 16.o, n.o 1, assenta no princípio da confiança mútua. Com efeito, foi este princípio da confiança mútua que permitiu não só a instituição de um sistema obrigatório de competências, que todos os órgãos jurisdicionais sujeitos ao âmbito de aplicação do regulamento têm de respeitar, mas também a correlativa renúncia, pelos Estados-Membros, às suas normas internas de reconhecimento e de exequatur, em benefício de um mecanismo simplificado de reconhecimento e de execução das decisões proferidas no âmbito de processos de insolvência (acórdão de 2 de maio de 2006, Eurofood IFSC, C-341/04, Colet., p. I-3813, n.os 39 e 40, e acórdão MG Probud Gdynia, já referido, n.os 27 e 28).

35

No que se refere ao processo principal, há que precisar que, por força do artigo 2.o do ato de adesão, as disposições do regulamento são aplicáveis na Hungria a partir da data de adesão deste Estado à União, a saber, desde 1 de maio de 2004.

36

Assim, a partir desta data, os órgãos jurisdicionais húngaros são obrigados, em conformidade com o artigo 16.o, n.o 1, do regulamento, a reconhecer qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, tomada por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.o deste regulamento. Além disso, em aplicação do artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento, qualquer decisão de abertura de um processo de insolvência adotada por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro produz, em princípio, na Hungria, a partir de 1 de maio de 2004, sem mais formalidades, os efeitos que a lei do Estado de abertura do processo lhe atribui.

37

Tendo em conta o que precede, há que considerar que o regulamento é aplicável em circunstâncias como as do processo principal, uma vez que, como resulta dos n.os 31 e 32 do presente acórdão, o processo de insolvência em causa está abrangido pelo seu âmbito de aplicação e que, a partir de 1 de maio de 2004, os órgãos jurisdicionais húngaros estavam, portanto, obrigados a reconhecer a decisão de abertura desse processo, adotada pelos órgãos jurisdicionais austríacos.

38

O artigo 4.o, n.o 1, do regulamento estabelece assim a regra segundo a qual a determinação do órgão jurisdicional competente conduz à determinação da lei aplicável. Com efeito, em conformidade com esta disposição, tanto no que diz respeito ao processo principal de insolvência como ao processo secundário ou territorial, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território foi aberto o processo (lex concursus) (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Eurofood IFSC, n.o 33, e MG Probud Gdynia, n.o 25; e acórdão de 15 de dezembro de 2011, Rastrelli Davide e C., C-191/10, Colet., p. I-13209, n.o 16). Esta lei regula, como enuncia o considerando 23 do regulamento, todas as condições relativas à abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência.

39

No entanto, a fim de preservar a confiança legítima e a segurança jurídica das transações em Estados-Membros que não sejam o de abertura do processo de insolvência, o regulamento prevê, nos seus artigos 5.° a 15.°, um certo número de exceções à referida regra da lei aplicável no caso de determinados direitos e situações jurídicas considerados particularmente significativos, nos termos do seu considerando 11.

40

Assim, no que se refere, nomeadamente, aos direitos reais, o artigo 5.o, n.o 1, do regulamento enuncia que a abertura do processo de insolvência não afeta o direito real de um credor ou de um terceiro sobre bens pertencentes ao devedor e que, no momento da abertura do processo, se encontrem no território de outro Estado-Membro.

41

O alcance desta disposição é esclarecido pelos considerandos 11 e 25 do regulamento, nos termos dos quais é necessário estabelecer para os direitos reais um vínculo especial «diverso do da lei do Estado de abertura [do processo]», uma vez que esses direitos se revestem de substancial importância para o reconhecimento de créditos. Assim, nos termos do considerando 25, o fundamento, a validade e o alcance de um direito real devem ser geralmente determinados pela lei do Estado onde se encontra o bem que é objeto do referido direito (lex rei sitae) e não ser afetados pela abertura de um processo de insolvência.

42

Consequentemente, o artigo 5.o, n.o 1, do regulamento deve ser entendido como uma disposição que, ao afastar a regra da lei do Estado de abertura do processo, permite aplicar ao direito real de um credor ou de um terceiro sobre determinados bens pertencentes ao devedor a lei do Estado-Membro em cujo território se encontra o bem em questão.

43

No que se refere ao processo principal, é certo que, no momento da abertura do processo de insolvência na Áustria, em 5 de dezembro de 2003, os bens do devedor sobre os quais recaía o direito real em causa se encontravam na Hungria, ou seja, no território de um Estado que, à época, ainda não era Estado-Membro da União.

44

No entanto, como se recorda nos n.os 35 e 37 do presente acórdão, não é menos certo que as disposições do regulamento são aplicáveis na Hungria, desde a data da adesão deste Estado à União Europeia, a saber, desde 1 de maio de 2004. Por conseguinte, a partir desta data, os órgãos jurisdicionais húngaros estavam obrigados a reconhecer a decisão de abertura do processo de insolvência adotada pelos órgãos jurisdicionais austríacos.

45

Nestas circunstâncias, a fim de preservar a coerência do sistema estabelecido pelo regulamento e a eficácia do processo de insolvência, há que interpretar o seu artigo 5.o, n.o 1, no sentido de que esta disposição é aplicável mesmo aos processos de insolvência abertos antes da adesão da República da Hungria à União, num caso, como o em causa no processo principal, em que, em 1 de maio de 2004, os bens do devedor sobre os quais recaía o direito real em questão se encontravam no território do referido Estado, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

46

Tendo em conta estas considerações, há que responder à questão submetida que o artigo 5.o, n.o 1, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que esta disposição é aplicável, em circunstâncias como as do processo principal, mesmo aos processos de insolvência abertos antes da adesão da República da Hungria à União, no caso de, em 1 de maio de 2004, os bens do devedor sobre os quais recaía o direito real em questão se encontrarem no território do referido Estado, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

47

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que esta disposição é aplicável, em circunstâncias como as do processo principal, mesmo aos processos de insolvência abertos antes da adesão da República da Hungria à União Europeia, no caso de, em 1 de maio de 2004, os bens do devedor sobre os quais recaía o direito real em questão se encontrarem no território do referido Estado, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: húngaro.