Processo C‑104/03
St. Paul Dairy Industries NV
contra
Unibel Exser BVBA
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Gerechtshof te Amsterdam (Países Baixos)]
«Convenção de Bruxelas – Medidas provisórias ou cautelares – Inquirição de testemunhas»
Sumário do acórdão
O artigo 24.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tal como alterada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que uma medida que ordena a inquirição de uma testemunha com o objectivo de permitir ao requerente avaliar a oportunidade de intentar uma eventual acção, de determinar o fundamento dessa acção e de apreciar a pertinência dos fundamentos susceptíveis de serem invocados nesse âmbito não é abrangida pelo conceito de «medidas provisórias ou cautelares
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
28 de Abril de 2005 (*)
«Convenção de Bruxelas – Medidas provisórias ou cautelares – Inquirição de testemunhas»
No processo C‑104/03,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do Protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, apresentado pelo Gerechtshof te Amsterdam (Países Baixos), por decisão de 12 de Dezembro de 2002, entrado no Tribunal de Justiça em 6 de Março de 2003, no processo
St. Paul Dairy Industries NV
contra
Unibel Exser BVBA,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),
composto por: P. Jann (relator), presidente de secção, N. Colneric, J. N. Cunha Rodrigues, M. Ilešič e E. Levits, juízes,
advogado‑geral: D. Ruiz‑Jarabo Colomer,
secretário: M.‑F. Contet, administradora principal,
vistos os autos e após a audiência de 14 de Julho de 2004,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da St. Paul Dairy Industries NV, por R. M. A. Lensen, advocaat,
– em representação da Unibel Exser BVBA, por I. P. de Groot, advocaat,
– em representação do Governo alemão, por R. Wagner, na qualidade de agente,
– em representação do Governo do Reino Unido, por K. Manji, na qualidade de agente, assistido por T. Ward, barrister,
– em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por E. Manhaeve e A.‑M. Rouchaud‑Joët, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 9 de Setembro de 2004,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial é relativo à interpretação do artigo 24.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), tal como alterada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e – texto modificado – p. 77; EE 01 F2 p. 131, e – texto modificado – p. 207), pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; EE 01 F3 p. 234), pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1) e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1, a seguir «Convenção»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a St. Paul Dairy Industries NV (a seguir «St. Paul Dairy») à Unibel Exser BVBA (a seguir «Unibel»), ambas estabelecidas na Bélgica, a respeito da inquirição de uma testemunha domiciliada nos Países Baixos.
Quadro jurídico
Convenção
3 O artigo 24.° da Convenção dispõe:
«As medidas provisórias ou cautelares previstas na lei de um Estado contratante podem ser requeridas às autoridades judiciais desse Estado, mesmo que, por força da presente Convenção, um tribunal de outro Estado contratante seja competente para conhecer da questão de fundo.»
Direito nacional
4 O artigo 186.°, n.° 1, do Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering, (Código de Processo Civil neerlandês, a seguir «CPCN») dispõe que, quando for admissível a prova testemunhal, pode ser ordenada a sua produção, a requerimento do interessado, antes de ser proposta a acção.
Litígio no processo principal e as questões prejudiciais
5 Por despacho de 23 de Abril de 2002, o Rechtbank te Haarlem (Países Baixos) ordenou, a requerimento da Unibel, a inquirição antecipada de uma testemunha domiciliada nos Países Baixos.
6 A St. Paul Dairy recorreu do referido despacho para o Gerechtshof te Amsterdam por considerar o tribunal neerlandês incompetente para conhecer do pedido apresentado pela Unibel.
7 Quanto à questão de fundo que opõe a Unibel e a St. Paul Dairy, o órgão jurisdicional de reenvio refere que é pacífico que ambas as partes estão estabelecidas na Bélgica, que a relação jurídica em causa no processo principal é regulada pelo direito belga, que os tribunais competentes para a decidir são os tribunais belgas e que não foi intentada nenhuma acção com o mesmo objecto nos Países Baixos ou na Bélgica.
8 Nestas condições, o Gerechtshof te Amsterdam decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) A ‘inquirição de testemunhas antes da propositura de uma acção’, prevista nos artigos 186.° e seguintes do [CPCN], cai no âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas, entendendo‑se que, em conformidade com os referidos artigos, tem por objectivo que as inquirições se possam realizar tão depressa quanto possível depois da ocorrência dos factos controvertidos e evitar o desaparecimento de provas, mas também e sobretudo fazer com que os interessados numa acção a intentar subsequentemente perante o juiz cível – ou seja, os que pretendam intentar uma acção, ou que esperam que uma acção será intentada contra eles, ou ainda os terceiros de qualquer forma interessados na instância – possam obter esclarecimentos prévios quanto aos factos (dos quais talvez não tenham ainda conhecimentos precisos), a fim de melhor poderem avaliar a sua situação, nomeadamente a questão de saber contra quem será intentada a acção?
2) Em caso afirmativo, trata‑se de uma medida na acepção do artigo 24.° da Convenção de Bruxelas?»
Quanto às questões prejudiciais
9 As questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que importa examinar em conjunto, têm essencialmente por objecto saber se um pedido destinado a que seja ordenada a inquirição de uma testemunha antes de intentada uma acção judicial, com o objectivo de permitir ao requerente avaliar a oportunidade de intentar uma eventual acção, é abrangido pelo campo de aplicação da Convenção enquanto medida provisória ou cautelar na acepção do artigo 24.° da mesma.
10 A título liminar, importa recordar que o artigo 24.° da Convenção apenas pode ser invocado para obter medidas provisórias ou cautelares relativas a matérias abrangidas no âmbito de aplicação da Convenção, tal como é definido pelo artigo 1.° da mesma (acórdãos de 27 de Março de 1979, De Cavel, 143/78, Colect., p. I‑583, n.° 9; de 31 de Março de 1982, C. H. W., 25/81, Recueil, p. 1189, n.° 12, e de 17 de Novembro de 1998, Van Uden, C‑391/95, Colect., p. I‑7091, n.° 30). Compete, assim, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é esse o caso no processo principal.
11 O artigo 24.° da Convenção autoriza um órgão jurisdicional de um Estado contratante a decidir um pedido de medidas provisórias ou cautelares mesmo que não seja competente para conhecer da questão de fundo do litígio. Esta disposição prevê assim uma excepção ao sistema de competências instituído pela Convenção e deve por isso ser interpretada de forma restritiva.
12 A competência derrogatória prevista no artigo 24.° da Convenção tem por objectivo evitar às partes um prejuízo resultante da longa duração dos prazos inerente aos processos internacionais em geral.
13 Em conformidade com esta finalidade, por «medidas provisórias ou cautelares», na acepção do artigo 24.° da Convenção, devem entender‑se as medidas que, nas matérias abrangidas pelo âmbito de aplicação da Convenção, se destinam a manter uma situação de facto ou de direito a fim de salvaguardar direitos cujo reconhecimento é, por outro lado, pedido ao juiz da questão de fundo (acórdãos de 26 de Março de 1992, Reichert e Kockler, C‑261/90, Colect., p. I‑2149, n.° 34, e Van Uden, já referido, n.° 37).
14 A concessão deste tipo de medidas requer da parte do juiz a quem são pedidas uma circunspecção especial e um conhecimento aprofundado das circunstâncias concretas em que as medidas solicitadas devem produzir os seus efeitos. De forma geral, deve sujeitar a sua autorização a todas as condições que garantam o carácter provisório ou conservatório da medida que decreta (acórdãos de 21 de Maio de 1980, Denilauler, 125/79, Recueil, p. 1553, n.° 15, e Van Uden, já referido, n.° 38).
15 No processo principal, a medida requerida, concretamente a inquirição, num órgão jurisdicional de um Estado contratante, de uma testemunha que está domiciliada no território desse Estado, tem por objectivo apurar os factos dos quais pode depender a solução de um futuro litígio para o qual seria competente um órgão jurisdicional de um outro Estado contratante.
16 Resulta do despacho de reenvio que essa medida, cuja concessão não está submetida, segundo a lei do Estado contratante em causa, a nenhuma condição particular, visa permitir ao requerente avaliar a oportunidade de intentar uma eventual acção, determinar o fundamento dessa acção e apreciar a pertinência dos fundamentos susceptíveis de serem invocados nesse âmbito.
17 Não existindo outra justificação para além do interesse do requerente em apreciar a oportunidade de uma acção judicial, deve concluir‑se que a medida requerida no processo principal não corresponde ao objectivo do artigo 24.° da Convenção, como se recordou nos n.os 12 e 13 do presente acórdão.
18 Importa sublinhar a este respeito que a concessão desta medida podia facilmente ser utilizada para contornar, na fase da instrução, as regras de competência enunciadas nos artigos 2.° e 5.° a 18.° da Convenção.
19 Ora, o princípio da segurança jurídica que constitui um dos objectivos da Convenção exige, designadamente, que as regras de competência que derrogam o princípio geral da Convenção enunciado no seu artigo 2.°, como as que figuram no artigo 24.° da mesma, sejam interpretadas de modo a permitir que um requerido normalmente prudente preveja razoavelmente em que órgão jurisdicional, para além dos do Estado do seu domicílio, deve defender os seus interesses no quadro de um processo judicial (v., nesta acepção, acórdãos de 28 de Setembro de 1999, GIE Groupe Concorde e o., C‑440/97, Colect., p. I‑6307, n.os 23 e 24; de 19 de Fevereiro de 2002, Besix, C‑256/00, Colect., p. I‑1699, n.° 24, e de 1 de Março de 2005, Owusu, C‑281/02, ainda não publicado na Colectânea, n.os 38 a 40).
20 A adopção de uma medida como a que está em causa no processo principal também é susceptível de evitar a multiplicação da titularidade da competência judiciária a respeito de uma mesma relação jurídica que é contrária aos objectivos da Convenção (acórdão de 20 de Março de 1997, Farrell, C‑295/95, Colect., p. I‑1683, n.° 13).
21 Embora as consequências como as descritas nos n.os 18 e 20 do presente acórdão sejam inerentes à aplicação do artigo 24.° da Convenção, apenas se podem justificar se a medida requerida corresponder ao objectivo do referido artigo.
22 Como se concluiu no n.° 17 do presente acórdão, essa situação não se verifica no processo principal.
23 De resto, um pedido de inquirição de testemunhas nas circunstâncias como as do processo principal poderia ser utilizado como um meio de evasão às regras aplicáveis, sob as mesmas garantias e com os mesmos efeitos para todos os sujeitos jurídicos, à transmissão e à execução dos pedidos efectuados por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro destinados a que se proceda a um acto instrutório num outro Estado‑Membro [v. Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de Maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial (JO L 174, p. 1)].
24 Estas considerações são suficientes para excluir que uma medida cujo objectivo é permitir ao requerente apreciar as vantagens ou os riscos de um eventual processo judicial possa ser qualificada como medida provisória ou cautelar na acepção do artigo 24.° da Convenção.
25 Deve assim responder‑se às questões apresentadas que o artigo 24.° da Convenção deve ser interpretado no sentido de que uma medida que ordena a inquirição de uma testemunha com o objectivo de permitir ao requerente avaliar a oportunidade de intentar uma eventual acção, de determinar o fundamento dessa acção e de apreciar a pertinência dos fundamentos susceptíveis de serem invocados nesse âmbito não é abrangida pelo conceito de «medidas provisórias ou cautelares».
Quanto às despesas
26 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:
O artigo 24.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tal como alterada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica, pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que uma medida que ordena a inquirição de uma testemunha com o objectivo de permitir ao requerente avaliar a oportunidade de intentar uma eventual acção, de determinar o fundamento dessa acção e de apreciar a pertinência dos fundamentos susceptíveis de serem invocados nesse âmbito não é abrangida pelo conceito de «medidas provisórias ou cautelares».
Assinaturas
* Língua do processo: neerlandês.
CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
DÁMASO RUIZ-JARABO COLOMER
apresentadas em 9 de Setembro de 2004 (1)
ECLI:EU:C:2004:509
Processo C‑104/03
St. Paul Dairy Industries NV
contra
Unibel Exser BVBA
[pedido de decisão prejudicial submetido pelo Gerechtshof de Amesterdão (Países Baixos)]
«Convenção de Bruxelas – Competência para adoptar medidas provisórias ou cautelares»
I – Introdução
O presente processo refere‑se ao problema de saber se a produção de prova testemunhal antes de iniciado um processo judicial, como prevista no direito neerlandês, está abrangida pelo âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas (2) . Concretamente, trata‑se de averiguar se uma diligência deste tipo deve ser qualificada de «medida provisória ou cautelar», para efeitos do artigo 24.° da Convenção.
II – O processo principal
1. Os factos relevantes do processo em que foi suscitada a questão prejudicial encontram‑se no despacho de reenvio.
2. Por despacho de 23 de Abril de 2002, o rechtbank (órgão jurisdicional de primeira instancia) de Haarlem ordenou a «inquirição provisória» (voorlopig getuigenverhoor) de uma testemunha residente nos Países Baixos. A referida medida foi adoptada a requerimento da Unibel Exser BVBA (a seguir «Unibel»), sociedade com sede em Stekene (Bélgica), no âmbito de um litígio contra a St. Paul Dairy Industries NV (a seguir «St. Paul»), estabelecida em Lokeren (Bélgica).
3. A St. Paul recorreu do referido despacho para o Gerechtshof de Amesterdão, pedindo a sua anulação, por considerar incompetente o tribunal neerlandês de primeira instância, ou o indeferimento do requerimento de inquirição em causa. Por seu lado, a Unibel pede que o Gerechtshof julgue o recurso inadmissível ou lhe negue provimento, declarando a decisão exequível a título provisório.
4. O despacho de reenvio não contém, contudo, a menor indicação sobre a natureza do litígio subjacente. Na audiência, o representante da St. Paul explicou que existia um litígio entre as partes, em relação à fixação do montante da indemnização pelos danos causados pelo funcionamento defeituoso de uma maquinaria montada pela Unibel numa instalação industrial da St. Paul.
III – As questões prejudiciais submetidas
5. Nestas circunstâncias, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de Bruxelas, o Gerechtshof suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as duas questões prejudiciais seguintes:
«1)
A ‘inquirição provisória de testemunhas antes da propositura de uma acção’, prevista nos artigos 186.° e seguintes do Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering (Código de Processo Civil neerlandês), cai no âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas, entendendo‑se que, em conformidade com os referidos artigos, tem por objectivo que as inquirições se possam realizar tão depressa quanto possível depois da ocorrência dos factos controvertidos e evitar o desaparecimento das provas, mas também e sobretudo fazer com que os interessados numa acção a intentar subsequentemente perante o juiz cível – ou seja, os que pretendam intentar uma acção, ou que esperam que uma acção será intentada contra eles, ou ainda os terceiros de qualquer forma interessados na referida acção – possam obter esclarecimentos prévios quanto aos factos (dos quais talvez não tenham ainda conhecimentos precisos), a fim de melhor poderem avaliar a sua situação, nomeadamente a questão de saber contra quem será intentada a acção?
2)
Em caso afirmativo, trata‑se de uma medida na acepção do artigo 24.° da Convenção de Bruxelas?»
IV – Considerações formuladas pelo órgão jurisdicional de reenvio
6. No despacho de reenvio, o Gerechtshof fez algumas observações:
É pacífico que ambas as partes se encontram estabelecidas na Bélgica, que a relação jurídica controvertida é regida pelo direito belga, que neste processo o juiz competente é o de Termonde, secção St. Niklaas, Bélgica, que não se encontra pendente nos Países Baixos qualquer processo na matéria (nem na Bélgica ou noutro local), e que a testemunha visada pela Unibel, ou seja, A. C. Schipper, reside em Zaandam (Países Baixos).
O artigo 66.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (3) , que entrou em vigor em 1 de Março de 2002, limita o seu âmbito de aplicação às acções judiciais propostas depois dessa data. Dado que, segundo o despacho, a petição inicial da Unibel entrou na Secretaria do rechtbank em 5 de Fevereiro de 2002, o regulamento não é aqui aplicável, se se entender que o requerimento de inquirição provisória de testemunhas antes da abertura do prazo de produção da prova deve ser considerado uma acção judicial na acepção do referido artigo.
As partes discordam em vários pontos: se a inquirição antecipada de testemunhas antes da abertura do prazo de produção de prova, no caso de não ter sido ainda proposta uma acção, i) cai no âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas, e, em caso afirmativo, ii) se a mesma pode ser considerada uma medida na acepção do artigo 24.° da própria Convenção. A Unibel responde afirmativamente e a St. Paul responde negativamente.
V – O direito nacional aplicável
7. O artigo 186.°, n.° 1, do Código de Processo Civil neerlandês (Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering – a seguir «WBR») dispõe que, quando for admissível a prova testemunhal, pode ser ordenada a sua produção, a requerimento do interessado, antes de intentada uma acção judicial.
8. Nos termos do artigo 187.° do mesmo código, é territorialmente competente para ordenar a inquirição provisória de uma testemunha o juiz dos Países Baixos em cuja jurisdição resida a pessoa que deve testemunhar. Em princípio, para essa inquirição é notificada a parte contrária.
9. O Hoge Raad der Nederlanden (Tribunal Supremo neerlandês), por despacho de 24 de Março de 1995 (4) , precisou os objectivos potenciais deste instrumento processual: não só serve para obter depoimentos de testemunhas pouco depois de ocorridos os factos controvertidos, evitando assim o desaparecimento das provas, como, fundamentalmente, para que qualquer sujeito envolvido numa posterior acção cível, como eventual autor ou demandado, obtenha informações prévias sobre os factos, para poder avaliar melhor a sua situação processual, de forma a, por exemplo, poder identificar a pessoa contra quem deve intentar a acção.
VI – O processo no Tribunal de Justiça
10. O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 6 de Março de 2003. Para além da Unibel, apresentaram observações escritas o Governo alemão e o Governo do Reino Unido, bem como a Comissão.
11. O processo foi distribuído à Primeira Secção do Tribunal de Justiça.
Na audiência, que teve lugar em 14 de Julho de 2004, estiveram presentes os representantes da St. Paul e da Comissão.
VII – Alegações das partes e dos intervenientes
12. Para a Unibel, a inquirição provisória de testemunhas, regulada no artigo 186.° do WBR, entra no âmbito de aplicação do artigo 24.° da Convenção, uma vez que visa manter uma situação de facto ou de direito. A sua natureza provisória resulta de as declarações das testemunhas assim obtidas não constituírem necessariamente provas definitivas no processo de fundo. Além disso, o artigo 186.° da WBR e a única via de que dispõe um cidadão belga para recolher uma declaração testemunhal nos Países Baixos antes de intentar uma acção.
13. O Governo alemão conclui que resulta de uma interpretação literal e teleológica que a Convenção não admite esta inquirição provisória, porque a decisão a tomar no final deste procedimento não é susceptível de reconhecimento e de execução, nos termos do artigo 25.° da Convenção. O procedimento em causa não se destina a regular as relações jurídicas entre as partes, mas a prestar uma assistência organizativa, mediante uma medida cautelar.
14. O Governo do Reino Unido entende que o artigo 24.° Convenção deve ser interpretado de modo a não excluir as medidas provisórias adoptadas antes de intentada uma acção. Quanto à segunda questão, cuja admissibilidade tem dúvidas, considera que o artigo 24.° não pode servir para que uma parte imponha à outra pedidos de provas que não apresentem as adequadas garantias processuais.
15. A Comissão, por seu lado, recorda que o artigo 24.° apenas é aplicável quando a própria Convenção também o for. Por outro lado, sustenta que a inquirição antecipada de testemunhas não preenche a condição de reversibilidade que caracteriza as medidas provisórias do artigo 24.°, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça.
16. Na audiência, a St. Paul recusou‑se igualmente a aceitar que o processo do artigo 186.° do WBR fosse abrangido pelo âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas.
VIII – Análise das questões prejudiciais
17. A primeira questão prejudicial pretende esclarecer se o processo específico de inquirição provisória (5) de testemunhas do direito processual civil neerlandês cai no âmbito de aplicação da Convenção Bruxelas, ao passo que a segunda visa a determinar se se pode qualificar como medida cautelar na acepção do artigo 24.° da referida Convenção.
18. Uma vez que não parece provável que um processo como o dos autos, que não tem por finalidade resolver a questão de fundo do litígio, se subsuma a outra disposição da Convenção distinta do artigo 24.°, há que analisar em conjunto os dois aspectos para precisar se há que considerar a inquirição provisória de testemunhas do artigo 186.° do WBR como uma das medidas previstas no referido artigo 24.° Outra abordagem consistiria em, antes de mais, entender que a primeira pergunta serve para verificar se a Convenção é aplicável, em abstracto, à inquirição provisória de testemunhas, ao passo que com a segunda se determinaria a norma concreta a que o referido procedimento se pode subsumir. Contudo, entendo que esta última solução, a mais artificial, não acrescentaria qualquer elemento útil à primeira.
19. Em qualquer caso, para a que a Convenção seja aplicável, têm de estar preenchidos outros requisitos. Embora formalmente se refiram à admissibilidade, estão ligados de forma tão estreita ao exame da questão de fundo que os analisarei em conjunto.
Quanto à admissibilidade e ao mérito
20. O processo oferece diversas vertentes que afectam a sua admissibilidade. Por um lado, para que o litígio esteja sujeito à Convenção de Bruxelas, tem de versar sobre matéria civil ou comercial e ser relativo a uma causa de alcance internacional. Tendo em conta que as medidas provisórias ou cautelares salvaguardam direitos de várias índoles, a sua inclusão na Convenção determina‑se não pela sua própria condição, mas pela natureza dos direitos que garantem. A Convenção não pode ser invocada em relação a medidas provisórias ou cautelares relativas a matérias que dela estão excluídas (6) .
21. Além disso, não existindo qualquer outra qualificação, a inquirição de testemunhas controvertida pode subsumir‑se às «medidas provisórias e cautelares», na acepção do artigo 24.° da Convenção.
22. Nos termos do artigo 1.°, a Convenção aplica‑se em matéria civil e comercial, qualquer que seja a natureza do órgão jurisdicional, excluindo‑se da sua aplicação o estado e a capacidade das pessoas singulares, os regimes matrimoniais, os testamentos e as sucessões, as falências, as concordatas e outros processos análogos, a segurança social e a arbitragem.
23. Apesar de o despacho de reenvio não fazer a menor referência ao objecto do litígio quanto à questão de fundo, os esclarecimentos do representante da St. Paul na audiência e o estudo dos documentos, enviados conjuntamente com o pedido de decisão prejudicial, permitem afirmar que na base do litígio está a diferença no cálculo do montante da indemnização por danos causados pelo funcionamento defeituoso de uma instalação técnica. O pedido fundamental parece ter a sua origem num contrato que vincula os empresários ou num título de responsabilidade civil criado pela lei (7) . Trata‑se, pois, de uma diferença, pelo menos potencial, em matéria de índole civil ou comercial. De qualquer maneira, compete ao órgão jurisdicional demonstrar se é este o caso.
24. Mais importante é objecção resultante do carácter internacional do litígio.
25. A Convenção não define expressamente esta condição. Contudo, no preâmbulo, refere‑se a importância de determinar a competência dos órgãos jurisdicionais das partes contratantes «na ordem internacional» (8) . Por outro lado, deduz‑se da finalidade do texto, à luz da disposição que lhe serve de base legal, a saber, o artigo 220.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 293.° CE), que a Convenção responde à mesma finalidade que a própria Comunidade prossegue (9) , cuja actividade normativa visa as relações jurídicas susceptíveis de constituírem um obstáculo ao comércio transfronteiriço. Dito de outro modo, a convenção não tem vocação para se converter numa lei única de designação do foro competente em situações sem interesse para a realização do mercado interno, quer dizer, em situações em que a totalidade dos elementos constitutivos se localizam no território de um Estado‑Membro.
26. Neste processo, como decorre do despacho de reenvio, as partes no litígio são belgas e as relações jurídicas entre ambas regulam‑se pelo direito belga. Por outro lado, o processo em que se verificou este incidente prejudicial corre os seus termos nos Países Baixos, num tribunal neerlandês. Daqui decorre, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, que o litígio contém elementos de natureza transfronteiriça.
27. A circunstância de as empresas belgas intentarem um processo em território neerlandês não lhe atribui necessariamente carácter internacional, uma vez que se exige ainda a verificação cumulativa de um vínculo suficiente com algum aspecto transnacional. Isto aconteceria, certamente, se se considerasse que o processo previsto nos Países Baixos constitui um incidente de outro processo principal suscitado, por exemplo, na Bélgica. Já assim não será se se entender, pelo contrário, que o processo neerlandês tem autonomia própria e é independente de um eventual posterior processo belga.
28. O Tribunal de Justiça não dispõe de elementos para apreciar a existência de um vínculo suficiente entre a inquirição provisória da testemunha requerida e um eventual processo noutro Estado‑Membro.
29. Como referiram várias partes e intervenientes, a chamada inquirição provisória de testemunhas não tem forçosamente este carácter circunstancial. Não há dúvida que a eficácia mais significativa dos depoimentos assim obtidos se verifica normalmente no âmbito de outro processo. Contudo, a lei não sujeita a sua execução e a sua validade à propositura de uma acção em determinado prazo. Além disso, embora, segundo declarou o Hoge Raad, a sua função típica resida em constituir um meio para obter informação útil para avaliar as possibilidades de êxito de um processo posterior ou para identificar a pessoa contra quem intentar a acção, de forma alguma se pode excluir a possibilidade de ser utilizada como antecedente de outra acção.
30. Se, no presente caso, o pedido de inquirição provisória de testemunhas prossegue esta finalidade, pode haver dificuldades para detectar um vínculo suficientemente significativo entre esta medida e um posterior processo, pelo que não haveria um litígio de carácter internacional.
31. O que se acaba de expor conduz a pensar que a inquirição provisória de testemunhas constitui, para efeitos da Convenção, mais que um instrumento cautelar, uma medida instrutória autónoma. Como tal, não é susceptível de atribuir carácter internacional a outro processo, de natureza principal, do qual está suficientemente desvinculado.
32. No direito europeu comparado existem também instrumentos que permitem a produção de prova prévia à propositura de uma acção judicial. Costumam caracterizar‑se por prosseguirem um objectivo cautelar específico (10) , em relação aos quais o juiz a que o pedido foi submetido pode fiscalizar o risco de desaparecimento invocado (11) , a pertinência para a resolução de um litígio dos factos que se pretende apurar (12) ou um princípio de prova para justificar a necessidade do processo (13) . É competente para proferir estas medidas o juiz que irá conhecer do mérito da causa e, só excepcionalmente, o juiz do foro da residência da testemunha em causa (14) .
33. Acresce que as ordens jurídicas dinamarquesa e espanhola autorizam que a produção antecipada da prova sirva para o esclarecimento dos factos pertinentes para a decisão da causa.
34. No caso presente, não existindo dados sobre a finalidade concreta prosseguida com o pedido de inquirição de testemunha em causa, é impossível emitir um juízo definitivo sobre o carácter internacional do litígio.
35. Por conseguinte, a adopção de uma decisão a este respeito incumbe ao juiz nacional. Extrapolando para o âmbito da determinação da competência judicial intracomunitária a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à necessidade de um factor transfronteiriço, pode afirmar‑se que as disposições da Convenção não se aplicam a actividades desenvolvidas no território de um único Estado‑Membro, aspecto cuja comprovação depende do apuramento de factos a realizar pelo órgão jurisdicional nacional (15) .
36. Esta abordagem é coerente com a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual compete ao tribunal do lugar do objecto das medidas requeridas apreciar as circunstâncias que justificam o seu deferimento ou indeferimento (16) .
37. Por último, fica por decidir se, mesmo que se considerem verificados os requisitos anteriores, o processo previsto no artigo 186.° do WBR se subsume a algum dos casos previstos na Convenção. Uma vez que a sua finalidade declarada não consiste na solução de um litígio material, não é subsumível a outra disposição que não o artigo 24.° da Convenção. Isto decorre da própria formulação do Gerechtshof, que se refere a esta norma na sua segunda questão prejudicial. Acresce que o mesmo resulta, explícita ou implicitamente, das observações das partes e dos intervenientes.
38. Ora, para decidir se a inquirição provisória de testemunhas se enquadra numa medida cautelar, importa precisar, em primeiro lugar, o que se entende por uma medida deste tipo.
39. Segundo o artigo 24.° da Convenção:
«As medidas provisórias ou cautelares previstas na lei de um Estado contratante podem ser requeridas às autoridades jurisdicionais desse Estado, mesmo que, por força da presente Convenção, um órgão jurisdicional de outro Estado contratante seja competente para conhecer do fundo.»
40. O Tribunal de Justiça pronunciou‑se em várias ocasiões sobre este aspecto, aceitando que uma medida com estas características seja adoptada antes de se intentar a acção quanto à questão de fundo (17) .
41. Quanto aos elementos caracterizadores destas medidas, lembrou que estes se devem destinar a manter uma situação de facto ou de direito a fim de salvaguardar direitos cujo reconhecimento é pedido (ou pode ser pedido, como resulta do que acima se expôs) ao juiz da questão de fundo (18) .
42. A concessão deste tipo de medidas exige ao tribunal competente uma análise particular e um discernimento profundo das circunstâncias concretas em que as medidas adoptadas devem produzir os seus efeitos. De acordo com as particularidades da situação e, especialmente, de acordo com os usos comerciais, deve ter poderes para limitar a sua autorização no tempo ou em relação à natureza dos bens ou mercadorias que são objecto das medidas requeridas, impor garantias bancárias, consignar um depósito judicial e, de forma geral, sujeitar a concessão em relação a todos os requisitos que assegurem o carácter provisório ou cautelar da medida que ordena (19) .
43. Do que fica exposto deduz‑se que a concessão de medidas provisórias ou cautelares ao abrigo do artigo 24.° está condicionada, entre outros aspectos, pela existência de um vínculo de conexão real entre o objecto das medidas requeridas e a competência territorial do Estado contratante do juiz que conhece do processo.
44. Também se infere do que ficou dito que incumbe ao órgão jurisdicional que adopta as medidas provisórias, com base no referido artigo 24.°, ter em conta a necessidade de impor exigências destinadas a proteger o carácter transitório das medidas.
45. Segundo declarou o Hoge Raad (20) , a justificação potencial da inquirição provisória de testemunhas é a obtenção de depoimentos pouco depois de ocorridos os factos controvertidos, evitando assim o desaparecimento das provas, e o esclarecimento de dados relevantes para intentar a acção. No âmbito deste último, refere‑se ao facto de que qualquer pessoa interessada numa posterior acção cível, como provável autora ou demandante, deve ter a possibilidade de recolher esclarecimentos prévios sobre os factos, para poder avaliar melhor a sua situação processual, a fim de, por exemplo, precisar a pessoa contra quem deve intentar a acção.
46. Resulta desta doutrina do Hoge Raad que a denominação «inquirição provisória» é inexacta, uma vez que a avaliação das provas ou o interesse das informações recolhidas não estão sujeitas à propositura de uma acção judicial ou ao decurso de um determinado prazo, dado que se lhes atribui um valor intrínseco, independente de qualquer outro processo.
47. A jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida permite afirmar, contudo, que, se uma das acções previstas no artigo 186.° do WBR prosseguir a finalidade de acautelar um elemento de prova para a sua utilização em posterior litígio, fica abrangida pela noção de «medidas provisórias ou cautelares» do artigo 24.° da Convenção. Não será assim quando se tratar de instrumentos para esclarecer aspectos de interesse processual, cuja relação com uma eventual acção pode revelar‑se ténue ou circunstancial.
48. O relatório Schlosser sobre a Convenção relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bertanha e da Irlanda do Norte à Convenção de Bruxelas, bem como ao protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça (21) , embora em matéria de execução de sentenças, confirma esta apreciação:
«Se se pretender que estas sentenças interlocutórias proferidas pelos tribunais e relativas ao andamento do processo e, nomeadamente, em matéria de diligências destinadas à instrução do processo, se encontram igualmente sujeitas ao artigo 25.° da Convenção, resulta, deste facto, que se encontram igualmente abrangidas as decisões que não podem ser executadas pelas partes sem a cooperação dos tribunais e cuja execução afecta terceiros, a saber, as testemunhas. Nos termos da Convenção, a ‘execução’ de tais sentenças não poderia ser efectuada. Dever‑se‑á concluir, a partir daqui, que as sentenças interlocutórias proferidas pelos tribunais e que não têm por objectivo regular as relações jurídicas entre as partes, mas organizar a continuação do andamento do processo, deverão ser excluídas do âmbito de aplicação do título III da Convenção.»
49. Acresce que a definição do Hoge Raad revela que, na maioria dos casos, o juiz requerido não necessita de levar a cabo qualquer apreciação do risco de desaparecimento da prova para decretar a medida, porque na realidade se pretende reunir dados úteis para organizar a estratégia em torno da conveniência de intentar um processo.
50. Ora, este tipo de actuações não podem ser acolhidas na Convenção, uma vez que não podem ser equiparadas, devido à sua distinta natureza – em especial, devido ao marcado carácter autónomo e por falta da condição de transitoriedade –, a medidas provisórias e cautelares do artigo 24.°
51. Por consequência, é impossível, em minha opinião, dar ao juiz de reenvio uma resposta unívoca, uma vez que a aplicabilidade da Convenção depende do objectivo concreto que prossegue a inquirição antecipada de testemunhas.
52. Face a esta situação caberia declarar inadmissíveis as questões submetidas, pois, segundo reiterada jurisprudência, a necessidade de se chegar a uma interpretação de direito comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e legal em que se inscrevem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique os elementos de facto em que assentam essas questões (22) .
53. A este respeito, há que ter em consideração que as informações e as perguntas que constam nos despachos de reenvio não servem apenas para permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis, mas também para dar aos governos dos Estados‑Membros, bem como às demais partes interessadas, a possibilidade de apresentarem observações nos termos do artigo 20.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça. Incumbe ao Tribunal garantir esta possibilidade, tendo em conta o facto de, por força dessa disposição, apenas as decisões de reenvio serem notificadas às partes interessadas (23) .
54. Contudo, face aos argumentos expostos, parece mais adequado a uma boa administração da justiça proporcionar ao juiz de reenvio alguns critérios interpretativos, precisamente os mesmos que evidenciam as carências da exposição factual do pedido de decisão prejudicial.
55. Sugiro assim que se responda às questões prejudiciais do Gerechtshof de Amesterdão no sentido de que uma disposição como a constante no artigo 186.° do WBR entra no âmbito de aplicação da Convenção de Bruxelas, quando qualificada de «medida provisória ou cautelar» na acepção do artigo 24.°, desde que constitua um meio para acautelar um instrumento probatório com o fim de ser utilizado num processo posterior.
56. A Comissão opõe‑se a esta solução por a considerar contrária ao princípio da segurança jurídica.
57. Há que reconhecer as dificuldades que podem existir num caso concreto para determinar se o objectivo de acautelar as provas predomina sobre as pretensões de esclarecimento. No entanto, creio que, sempre que se demonstre a existência de um risco de desaparecimento de uma prova, o juiz tem poder para aplicar as regras da convenção.
58. Por outro lado, a ser outro o entendimento, ignorar‑se‑ia o carácter autónomo, em relação aos ordenamentos nacionais, de que deve revestir a noção de «medidas provisórias ou cautelares» referida no artigo 24.° da Convenção.
59. Em qualquer caso, como correctamente refere o Governo do Reino Unido, a questão suscitada tem um mero interesse histórico, uma vez que, entretanto, em 1 de Janeiro de 2004 entrou em vigor o Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de Maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial (24) , que facilita este tipo de diligências.
60. O referido texto permite que um tribunal de um Estado‑Membro requeira ao tribunal competente de outro Estado‑Membro a obtenção de provas; ou obtenha provas directamente noutro Estado‑Membro sempre que se destinem a ser utilizadas num processo judicial já iniciado ou previsto (25) . O tribunal requerido tem de executar o pedido de acordo com o seu ordenamento ou, salvo incompatibilidade, segundo um procedimento especial previsto na lei do Estado‑Membro do órgão jurisdicional requerente (26) .
61. Acresce que o Regulamento n.° 1206/2001 prevalece sobre as disposições contidas em acordos ou convénios bilaterais ou multilaterais celebrados pelos Estados‑Membros na matéria (27) . Quanto à possível vigência residual do Regulamento n.° 44/2001, o primado do novo acto baseia‑se no princípio da sucessão das normas jurídicas (lex posterior derogat priori).
IX – Conclusão
62. Pelas razões expostas, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda às perguntas formuladas pelo Gerechtshof de Amesterdão no sentido de que uma disposição como a constante no artigo 186.° do Código de Processo Civil neerlandês (Wetboek van Burgerlijke Rechtsvordering) deve ser considerada uma medida na acepção do artigo 24.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, desde que constitua um meio para acautelar um instrumento probatório com o fim de ser utilizado num processo posterior.
1 –
Língua original: espanhol.
2 –
Convenção de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 24). Na redacção que lhe foi dada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e – texto alterado – p. 77; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 41), pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; edição em língua portuguesa, JO 1989, L 285, p. 54), pela Convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1), e pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1, a seguir «Convenção de Bruxelas» ou «Convenção»). A versão consolidada foi publicada no JO 1998, C 27, p. 1.
3 –
JO 2001, L 12, p. 1.
4 –
Despacho de 24 de Março de 1995, NJ 1998, n.° 414.
5 –
Para efeitos práticos, utilizo a tradução literal do termo empregue pelo legislador neerlandês.
6 –
Acórdãos de 27 de Março de 1979, De Cavel (143/78, Colect., p. 585, n.° 8), e de 26 de Março de 1992, Reichert e Kockler (C‑261/90, Colect., p. I‑2149, n.° 32).
7 –
Acórdão de 27 de Setembro de 1988, Kalfelis (189/87, Colect., p. 5565, n.° 18).
8 –
Considerando único.
9 –
Acórdão de 10 de Fevereiro de 1994, Mund & Fester (C‑398/92, Colect., p. I‑467, n.os 11 e 12).
10 –
V. §§ 485 e segs. do Código de Processo Civil alemão (Zivilprozessordung, a seguir «ZPO»); §§ 384 e segs. do Código de Processo Civil austríaco (Zivilprozessordung, a seguir «ÖZPO»); artigo 584.° do Código Judicial belga (code judiciaire), o artigo 343.° do Código de Processo dinamarquês; artigos 256.° e segs. da Ley de enjuiciamiento civil espanhola; artigo 10.° do capítulo 17 do Código de Processo finlandês; artigo 145.° do novo Código de Processo Civil francês; artigos 692.° e segs. do Código de Processo Civil italiano (códice di procedura civile; a seguir «CPC»), artigo 350.° do novo Código de Processo Civil luxemburguês; artigos 520.° a 522.°‑A do Código de Processo Civil português, e capítulo 41 do Código de Processo sueco.
11 –
V. § 485, primeiro parágrafo, do ZPO.
12 –
V. acórdão do Oberlandesgericht de Hammm, publicado na NJW‑RR 1998, p. 933. V. ainda § 387 do ÖZPO.
13 –
§ 487 do ZPO.
14 –
§ 486, terceiro parágrafo, do ZPO; § 343, n.° 3, do ÖZPO, e artigo 693.° do CPC.
15 –
V., designadamente, acórdão de 23 de Abril de 1991, Hoefner e Elser (C‑41/90, Colect., p. I‑1979, n.° 37).
16 –
Acórdão de 21 de Maio de 1980, Denilauler (125/79, Recueil. p. 1553, n.° 16).
17 –
Acórdão de 17 de Novembro de 1998, Van Uden (C‑391/95, Colect., p. I‑7091, n.° 29). V. igualmente Bischoff, J‑M. e Huet, A.: «Chronique de jurisprudence de la Cour de Justice des Communautés européennes», Journal du droit international, 1982, n.° 1, pp. 942 a 947, designadamente p. 947.
18 –
Acórdão Reichert e Kockler, já referido, n.° 34.
19 –
Acórdão Denilauler, já referido, n.° 15.
20 –
V. supra n.° 9.
21 –
JO 1979, C 59, pp. 71 e segs., designadamente, n.° 187; tradução portuguesa no JO 1990, C 189, pp. 184 e segs., designadamente, n.° 187; a seguir «relatório Schlosser».
22 –
V., designadamente, acórdãos de 26 de Janeiro de 1993, Telemarsicabruzzo e o. (C‑320/90 a C‑322/90, Colect., p. I‑393, n.° 6), e de 21 de Setembro de 1999, Albany (C‑67/96, Colect., p. I‑5751, n.° 39).
23 –
Acórdão de 1 de Abril de 1982, Holdijk (141/81, 142/81 e 143/81, Recueil, p. 1299, n.° 6), e despachos Saddik, n.° 13, Gomis e o., n.° 10, já referidos.
24 –
JO L 174, p. 1.
25 –
Artigo 1.°, n.os 1 e 2.
26 –
Artigo 10.°, n.os 2 e 3.
27 –
Artigo 21.°, n.° 1.